IX
Teu cheiro. Teu cheiro irrompe-me. Entre os milénios. Entre pingos de corpos, diluídos na azáfama. Na azáfama me és única. A única surpresa. A única possibilidade de sentido é dada em teu cheiro. Exala-me. Exala-me as fragrâncias em teu corpo, para que em teu corpo me suem os milénios. A atracção dos milénios.
Como levar-te? Como levar-te longe? Como te levar?
Como te levar o sol em minhas mãos?
Como levar-te o truque da surpresa?
A multitude. Como levar-te a multitude? A multitude das estrelas. Cadentes. As estrelas cadentes caindo perto de teu cheiro. Perto dos lugares onde te aguardo a nudez. Terrenos. Terrenos e reflexos, os corpos ditados nas leis da atracção. O celestial magnetismo da estranheza deflagrando-me as flores, em teu corpo.
Teu cheiro. Teu cheiro alcança-me o epicentro do desejo. A terra toda tremendo-me os pontos cardeais. Movidos, meus pés. Céleres. Céleres até ti. Céleres pés dançando-me os astros. Até que me vagues.
Vaga-me. Vaga-me a transmutação da matéria. A volatilização dos corpos fixando o sólido desejo de ti. Acresce-me as fragrâncias. Às fragrâncias acresce-me os lugares. Todos os lugares onde o todo te incorpora.
Dançante. A matéria dançante compondo-me. A dança dos astros.
Dança-me.
Dança-me o início. Dança-me o início e o fim, pois tudo é em ti desde o início. As coisas, os lugares são em ti. Desde o início. Por dentro da abstracção. Por dentro da abstracção há a realidade de teu cheiro. A música das esferas singrando o apuramento do olfato. Irreal. Irrompendo. A irrealidade rompendo as águas do mundo, até ao refluxo das cores. Todas as cores brotando do caos. Cores vivas vivendo as marés. Indo e vindo em teu corpo. Tudo de novo. De novo. A novidade do instante. O desejo deflagrando-nos por dentro das horas. Por dentro do fluxo dos corpos. As marés vivas. As marés vivas avivando em teu cheiro. O poder divinatório dos oceanos em nossas mãos. Frágeis mãos ascendendo-nos os sexos, afagando-nos os contornos. Até à ilimitação.
Ilimita-me,
Ilimita-me o querer. Ilimita-me o querer até que só a ti te queira. Agora. Para sempre. O instante em que o mundo se nos funde. Mãos, dedos, derivando na procura do húmus. Longe. Bem longe da oblonga matéria dos dias. Longe e tão perto. Tão perto. Tão mais perto do fogo. Tão mais perto dos lugares onde o todo em nós se funde. A irrealidade crivada nas chamas. Ardendo. O amor ardendo. Tão perto. Tão perto quanto a proximidade nos pode ser próxima. Estradas, carros, casas. Ardendo. Os caminhos. Ardendo. Tudo ardendo. Tudo ardendo, porque tudo é aqui. Tudo ardendo porque tudo é em ti. Aqui e agora. Não mais longe que isto.
Aqui e agora.
O primeiro beijo como se o último fosse.
O primeiro rio correndo.
A primeira estória contada.
O primeiro ninho caindo.
O primeiro voo dos pássaros.
Os primitivos gestos singrando, por fora da mitologia.
O desejo.
O vento soprando a direcção de teu cheiro.
O desejo.
Aqui e agora.
Aqui é agora.
Agora é aqui.
Agora é em ti.
Álvaro Cunhal. s. d.
Álvaro Cunhal. s. d.