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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Love Songs to no one else - IX


IX

Teu cheiro. Teu cheiro irrompe-me. Entre os milénios. Entre pingos de corpos, diluídos na azáfama. Na azáfama me és única. A única surpresa. A única possibilidade de sentido é dada em teu cheiro. Exala-me. Exala-me as fragrâncias em teu corpo, para que em teu corpo me suem os milénios. A atracção dos milénios. 
Como levar-te? Como levar-te longe? Como te levar? 
Como te levar o sol em minhas mãos? 
Como levar-te o truque da surpresa? 
A multitude. Como levar-te a multitude? A multitude das estrelas. Cadentes. As estrelas cadentes caindo perto de teu cheiro. Perto dos lugares onde te aguardo a nudez. Terrenos. Terrenos e reflexos, os corpos ditados nas leis da atracção. O celestial magnetismo da estranheza deflagrando-me as flores, em teu corpo. 
Teu cheiro. Teu cheiro alcança-me o epicentro do desejo. A terra toda tremendo-me os pontos cardeais. Movidos, meus pés. Céleres. Céleres até ti. Céleres pés dançando-me os astros. Até que me vagues. 
Vaga-me. Vaga-me a transmutação da matéria. A volatilização dos corpos fixando o sólido desejo de ti. Acresce-me as fragrâncias. Às fragrâncias acresce-me os lugares. Todos os lugares onde o todo te incorpora. 
Dançante. A matéria dançante compondo-me. A dança dos astros. 
Dança-me. 
Dança-me o início. Dança-me o início e o fim, pois tudo é em ti desde o início. As coisas, os lugares são em ti. Desde o início. Por dentro da abstracção. Por dentro da abstracção há a realidade de teu cheiro. A música das esferas singrando o apuramento do olfato. Irreal. Irrompendo. A irrealidade rompendo as águas do mundo, até ao refluxo das cores. Todas as cores brotando do caos. Cores vivas vivendo as marés. Indo e vindo em teu corpo. Tudo de novo. De novo. A novidade do instante. O desejo deflagrando-nos por dentro das horas. Por dentro do fluxo dos corpos. As marés vivas. As marés vivas avivando em teu cheiro. O poder divinatório dos oceanos em nossas mãos. Frágeis mãos ascendendo-nos os sexos, afagando-nos os contornos. Até à ilimitação. 
Ilimita-me, 
Ilimita-me o querer. Ilimita-me o querer até que só a ti te queira. Agora. Para sempre. O instante em que o mundo se nos funde. Mãos, dedos, derivando na procura do húmus. Longe. Bem longe da oblonga matéria dos dias. Longe e tão perto. Tão perto. Tão mais perto do fogo. Tão mais perto dos lugares onde o todo em nós se funde. A irrealidade crivada nas chamas. Ardendo. O amor ardendo. Tão perto. Tão perto quanto a proximidade nos pode ser próxima. Estradas, carros, casas. Ardendo. Os caminhos. Ardendo. Tudo ardendo. Tudo ardendo, porque tudo é aqui. Tudo ardendo porque tudo é em ti. Aqui e agora. Não mais longe que isto. 

Aqui e agora. 

O primeiro beijo como se o último fosse. 
O primeiro rio correndo. 
A primeira estória contada. 
O primeiro ninho caindo. 
O primeiro voo dos pássaros. 

Os primitivos gestos singrando, por fora da mitologia. 

O desejo. 
O vento soprando a direcção de teu cheiro.
O desejo.

Aqui e agora.
Aqui é agora. 
Agora é aqui. 

Agora é em ti.

Álvaro Cunhal. s. d.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Excerto de "Vácuo..." - Rui Carvalho

A adversidade. A adversidade é-nos relatada na experimentação do corpo. A experiência do corpo invoca-nos a materialidade do mundo. Enquanto coisa extensa, o mundo oferece-nos resistência. Somos seres de desejo, e a nossa existência enquanto seres de desejo está circunscrita, em primeira instância, pelo plano da materialidade. O mundo é uma realidade extensa. Extensa e espessa. Tal qual o humano. Somos vibrados na conquista e no seu correlato, a perda. A espessura do mundo é-nos relatada na experimentação da perda. Somos como crianças a perder objectos. Enquanto somos crianças a perder objectos o mundo não é ainda matéria. O mundo não é ainda material. O mundo é um lugar de recreio. 
Estamos no jardim de infância. 
Na infância já temos adquirida a noção de posse. No entanto, ainda não respiramos a vicissitude. Na infância somos defronte uma miriade de jogos. Jogamos. Na infância ainda jogamos. Somos os donos do jogo. Somos miúdos. Enquanto somos miúdos somos donos das muitas bolas. São milhentas as possibilidades. As bolas furam. As bolas furam, mas há ainda mais bolas. Bolas e mais bolas. As bolas furam e ficamos ressentidos com aquele que as furou. Os berlindes são perdidos ou roubados. Os berlindes são perdidos ou roubados por quem tem o abafador. O nosso ressentimento é para com o dono do abafador. 
“Nunca mais sou teu amigo!”. Está dito. 
Está dito, mas amanhã tudo é outra coisa. 
As crianças renascem. As crianças renascem com as manhãs. 
Com o tempo perdemos o dom de renascer com as manhãs. Jamais renascemos. Jamais renasceremos. Somos a perder. Tudo perdemos. A espessura do mundo abate-se sobre as nossas existências. Somos soterrados no interior de uma série infinita de impossibilidades. Já não há manhãs. A partir de determinada altura as manhãs deixam de existir. Somos os dias, antes ainda da descoberta da noite. Os dias são os dias. Os dias são os doze trabalhos de Héracles. Temos de viver os doze trabalhos. Os doze trabalhos de Héracles. Os doze trabalhos de Héracles são sobrevindos. Quando os doze trabalhos de Héracles são sobrevindos estamos perante o vencedor. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Winter series, n.º 3 - by Steven Space


Love songs to no one else - X

X

A confiança é uma questão atroz. Confiar. Como confiar? 
As borboletas voam. A confiança é um voo de borboleta. 
Confiar. Como confiar no voo das borboletas? O voo da borboletas é efémero. São efémeras, as borboletas. Como a respiração. Também a respiração é efémera. Tal qual os dias. Efémeros, os dias. No entanto, somos a respirar. Respiramos os dias. Somos seres de respiração. Ofegantes. Somos a respirar a nauseabunda atmosfera. Somos a respirar. Respiramos o voo. Somos o voo das borboletas. Efémeros. Respiramos com as borboletas. Também as borboletas respiram? Julgo sermos entre as borboletas. A respirar. A necessidade de respiração. Respirar. Um segundo que seja. Longe da putrefacta atmosfera. Eu respiro. Sou a respirar. Junto com as borboletas. Todas as cores do arco íris. Sou a soma dos segundos. Sou a soma dos segundos nas cores. Eu respiro. Espero o pousar das borboletas. No meu ombro. Frágeis. As borboletas. As borboletas são tão frágeis. Como respirar-te? Como respirar? Como respirar o mundo? Como respirar o mundo até ao respirar das borboletas? Como confiar o mundo se o mundo é atroz? As borboletas respiram. Sigo o respirar das borboletas. Como respirar-te? Como respirar-te, a ti que te retrais? Mil e uma noites. Mil e uma noites entre os astros, Sherazade. Respirando. Os astros são seguidos, na espera. Na espera te espero. Mil e uma noites. Nenhuma delas igual. Nenhuma noite repetida. Só os dias se repetem. As noites são no acontecer dos presságios.  
Eis-nos!
Eis-me! 
O nocturno esforço. Sou na espera. A esperar. Divago-me na espera. Sou o nocturno respirar  das noites. Eis-me. A respirar. Nocturno. Noctivago. Na noite as luzes se acendem. Eu me acendo. Fósforos. Somos fósforos acendendo cigarros. Na atmosfera. Entre os dias. Dia a dia.  Os dias são supérfluos. Os dias são vagos. Tão vagos quanto a plenitude do desastre. Eu. Desastroso. Eu, que sou desastroso. Espraio-me no silêncio. O silêncio liquefeito, trazendo-me as noites. Mil e uma noites. O néctar de teu corpo vertendo em meus lábios. A doçura das noites, em ti. Soletra-me o amor Sherazade. Conta-me a infindável história dos teus dias, para que teus dias me sejam. Não mais desposarei outra mulher que não tu. Tu, que me segredas o infindável lamento. Doma-me. Doma Shariar, o rei enfurecido. Atemoriza-me a maldição das noites sem ti. Por nenhuma outra mulher te trocarei, Sherazade. Qualquer que seja. Tocarei o fogo. Em teu corpo tocarei o fogo, até minhas mãos serem sinalizadas. Ouro e diamantes não me demovem. Ouro e diamantes não me demovem quando todo o ouro me és. Em teu corpo. Em teu corpo subo as escarpas até minhas mãos. Junto a teu corpo me ato o chão. Teu corpo ato para que não mais planes o voo. O voo das borboletas. Poisa em meu ombro, Sherazade. Pousa meu ombro e sussurra-me o esplendor das noites persas. Perene. Serei perene em meu amor por ti.

Álvaro Cunhal, s. d.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Aqui era a puberdade.

Aqui era a puberdade,
o breve lugar 
                      onde as ruas desertas dos subúrbios 
                      nos irromperiam os domingos à tarde,

onde todo o desejo seria visceral,
visceralmente transcrito na musicalidade
                                                                   onde nos esperávamos.

Aqui,
         aqui era o lugar,
                                     o breve lugar onde imunes aos dias nos julgámos.

A primeira ejaculaçäo,
                                     o primeiro amor precoce
                                     aqui aconteceu.

Aqui eram as fundamentais mudanças.
                                                              
O crescimento,
                         o inevitável crescimento
                         aqui se deu.

Repentinamente
                             algo mudou,
                                                 repentinamente o vazio se fez,
                                                 e no vazio nos tornámos outros.

Pai, porque me abandonaste? 

                                                   Porque me embriagaste 
                                                   no gáudio
                                                                    das breves batalhas vencidas
                                                                    e depois abandonaste meu corpo?

Porque me deixaste só
                                      aguardando as lanças, 
                                      esperando a carnificina?

Porque me expulsaste dos lugares paradisíacos 
                                                                              onde me habitava na novidade?

Porque não me permitiste vencer
                                                       a guerra contra o corpo?
                                        
Jesus, 

           Teu filho


                           sucumbindo na derrota!

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Summer series, n.º 4 - by Steven Space


Excerto do inédito "We stand!" - Rui Carvalho

 A ganância.

Ao meu lado há gente que morre. Há gente que morre destituída de ganância. Ao meu lado há gente que morre destituída de ganância. Onde a terão deixado? Onde a terão perdido? Onde terá toda esta gente deixado toda a sua ganância? Onde terão perdido o seu desejo de reconhecimento? Aqui. Aqui há gente que luta contra a morte. Aqui. Ao meu lado há gente que lutando contra a morte terá encontrado a essência da vida. Ao meu lado há gente que descobriu a essência da vida. Lutando contra a morte. Ao meu lado, os enfermos. Os enfermos vislumbrando a essência da vida. Ao meu lado os enfermos encontraram a essência da vida. Alcançaram por fim a essência da vida. A luta contra a morte. A essência da vida. Não a luta contra os outros. Não a luta para suplantar os outros. Não a continua luta para deixar os outros lá atrás. Bem lá atrás. A ganância. A ganância morrendo. Todos os dias. Ao meu lado há gente morrendo. Destituída de ganância. Dia a dia. Os enfermos morrem. Consigo ouvir seus corações implodindo. A cada segundo. A cada segundo há corações implodindo. Eu não me mexo. Mantenho-me seguro. Preciso manter-me seguro. 

O aneurisma. 

Não esquecer o aneurisma. Como posso mexer-me? Não me mexo. Não te mexas. Nem por um segundo. Não te mexas. Oiço. O desejo. Refreia o teu desejo. Refreio o meu desejo. Cumpro as regras. 
A sobrevivência. 
A minha sobrevivência. Nem um dedo. Não mexo nem um dedo. O desejo de reconhecimento. Não quero ser reconhecido. Nem um milímetro. Nem um milímetro de reconhecimento. 

A luta. A vontade de luta. 
O poder. A vontade de poder. 

A minha vontade de poder encontrou o seu foco. Por fim. Luto contra a morte. A cada segundo. A cada segundo, as contrações musculares. Os músculos implodindo. Eu implodindo. A cada segundo. 


Não é possível extirpar a ganância do coração dos homens, mas é possível extirpar os homens abjectamente gananciosos do coração do mundo.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Winter series, n.º 2 - by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - XVI

Entrevista a Sebastien Void

XVI

Rui Carvalho: como defines aquilo que denominas de toque? Como somos tocados e como nos eximimos ao toque?

Void: somos tocados. Como teclas de um piano. É isso. Tocados. Somos tocados. Como cordas de um violino. Como cordas de um violoncelo. Somos tocados pela vibração do mundo. O mundo toca-nos. Somos tonalidades, timbres, sons que se vibram na vibração do mundo. Somos todo o espectro sonoro em nosso redor. Entre o grave e o agudo.  
A obra de Bach. A obra de Bach é Bach a ser tocado pelo mundo. A obra de Kant é Kant a ser tocado pelo mundo. Pessoa é Pessoa a ser tocado pelo mundo. Pessoa e Kierkegaard. Pessoa e Kierkegaard são, porventura, os casos mais geniais da experimentação do toque. Em Kierkegaard e em Pessoa há uma genial desmultiplicação do toque do mundo. 
Somos tocados em distintas escalas. Há escalas que se cruzam. Há escalas incompatíveis. Compassos. Claves. Divisões de tempo. Modulações. O modo como nos tocamos ou nos deixamos tocar enforma as nossas vidas. 
A reverberação, a caixa de ressonância de que dispomos é um apetrecho fundamental. A nossa caixa de ressonância. Tudo depende da nossa caixa de ressonância. Da nossa caixa de ressonância e do modo como apreendemos as várias escalas. Há pessoas que estão aptas a abranger todo o espectro sonoro. Outros são inaptos a deixar crescer em si o dom da musicalidade. A maioria das pessoas é amusical. Na maioria das pessoas não germinam nem teclas nem cordas. Outras possuem cordas e teclas aptas a serem tocados, contudo a sua caixa de reverberação é demasiado débil. O toque do mundo. O toque do mundo dá-se-nos através do contacto. O contacto reflecte-se nas nossas estruturas disposicionais, nos nossos modos de disposição. O humano é o ser disposto. As nossas várias disposições, os nossos vários estados disposicionais distendem-nos, de fora para dentro e de dentro para fora. Somos seres no mundo. Tudo depende da nossa abertura ou do nosso fechamento para aceder à vibração.

domingo, 20 de novembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - XV

Entrevista a Sebastien Void 

XV

Rui Carvalho: a farsa e a trama do sucesso. Podes esclarecer-nos melhor em que consistem esses dois conceitos, se é que são conceitos distintos entre si?


Void: cada indivíduo, cada um de nós, é, à partida, uma perspectiva em aberto. Somos uma miriade de pontos de vista em aberto. Cada um de nós vê o mundo a partir de um prisma que lhe é próprio, que lhe é único. Tal facto deriva não só da nossa situação espacial, mas sobremaneira da nossa situação vivencial. Isto é, cada um de nós ocupa o seu próprio espaço no mundo. Não somente um espaço fisico, mas especialmente um espaço existencial. Cada espaço físico, cada espaço existencial é único, impessoal e intransmissível. Contudo, ao sermos lançados na sociabilidade esse ponto de vista é preenchido com uma determinada visão de mundo que nos é socialmente auto-incutida. Incutida na perspectiva da sociabilidade, cada perspectiva individual deixa de ser algo particular para se tornar algo genérico e comum a todos os eus. Os modos do adestramento e do condicionamento constituem-nos num ponto de vista condicionado e determinado. Adestrada e condicionada, a nossa perspectiva individual passa a ser em tudo idêntica à de todos os outros eus. A farsa é justamente o palco onde nos interpretamos nos papéis que nos são dados interpretar. A farsa é o palco onde nos interpretamos no lugar de todos os outros eus. Os papéis são-nos dados a escolher. Podemos escolher ser figuras ou figurantes. Contudo, a nossa escolha não é propriamente uma escolha livre. A nossa escolha depende em muito das nossas capacidades histriónicas, bem como da nossa destreza social. A esperteza, a esperteza é uma condição essencial ao sucesso. Nas sociedades de consumo ocidentais e ocidentalizadas a farsa é urdida na trama do sucesso. A trama do sucesso é teleológica. Nas sociedades de consumo tudo se trata de sucesso e insucesso, de ser ou não ser-se famoso ou bem sucedido. O receio do fracasso contrapõe-se ao atingir da meta, da meta teleológica do sucesso. No caso das sociedades de consumo ocidentais, o receio do fracasso encontra-se de tal modo impregnado nas nossas peles que nos faz perder por completo o sentido de realidade. Sem sentido de realidade somos levados na leva. A ausência de sentido de realidade impede-nos de sermos tocados pela adversidade. A experimentação do toque do mundo é uma condição essencial da nossa abertura para o desvelar-se do conhecimento. No entanto, enquanto nos deixamos manter imersos na trama do sucesso, o toque é-nos inócuo. Os toques da adversidade são-nos apresentados como casos de azar. Somos visitados pelo azar, dos mais diversos modos e maneiras. Somos jogados na sorte e no azar e, enquanto nos sentirmos jogados na sorte e no azar, jamais estaremos aptos a ser feridos no toque do mundo. A farsa cifra-se, pois, na constituição de um ponto de vista artificial, o qual nos é facultado pelas estratégias da sociabilidade. Sendo que nas sociedades de consumo a farsa é erigida a partir da trama do sucesso. A trama do sucesso constitui-se  como o dar-se em acto de uma farsa.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Excerto de "Vácuo ou as estratégias da finitude" - Rui Carvalho

Assentar tijolo. Ter a cabeça repleta de leis, de códigos, de artigos de códigos. Memorizar os códigos e os artigos dos códigos. Aplicar as leis, com maior ou menor destreza. Adequar as leis às situações. Assentar tijolo. Misturar terra, água e cimento. Erguer muros e paredes, a fio de prumo.  Erguer muros no fio de prumo da lei. Com tijolos se constroem casas. Com as leis se habitam prisões. 
Na imbecilidade. 
Na imbecilidade tornamo-nos próximos de erigir o inferno. Na terra erigimos infernos. Somos pródigos na artimanha de erigir infernos. 
Entre o grave e o agudo. Somos esdrúxulos. Silabas tónicas acentuando o degredo. Não bastasse a finitude. Não bastasse a finitude de todas coisas, somos maníacos na estupidez. Nada aprendemos com a repetição. A história repete-se, sempre a mesma. Os erros. Sempre os mesmos erros. Somos a histórica repetição da estupidez. 
O medo. 
O medo do desconhecido não explica tudo, não justifica tudo. A insegurança não explica o ódio. As pessoas não votam na estupidez por insegurança ou medo. As pessoas votam na estupidez porque são estúpidas. Erguemos a estupidificação em nosso redor. Idolatramos a televisiva imbecilidade. 
Raios partam as boas maneiras. 
Raios partam as imprecisões. 
De imprecisões está o inferno cheio. As nações são contingências históricas. A nacionalidade é uma mera contingência geográfica. Tememos o desconhecido por cobardia. Na cobardia ficamos reféns de nossa própria rotina, de nossa própria miséria. Lá atrás, bem lá atrás, perdemos a cortesia da hospitalidade. Perdemos o dom de bem receber. Somos para turistas. Somos para turistas porque os turistas nos trazem esmola. Tememos o desconhecido, desconhecendo que o pior habita entre nós. O pior não é a estrangeira surpresa e o encanto de novos saberes. O pior está entre nós, gangrena nas nossas mesquinhas certezas. Sem dúvidas, sem dúvidas tudo sabemos. Somos repletos de falsos saberes, de falsas sabedorias. O saber não é o saber que se sabe. O saber. O saber é o saber que se não sabe. Deveríamos ser Gregos, deveríamos ser Gregos no saber.   

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Excerto do inédito "Vácuo ou as estratégias da finitude" - Rui Carvallho

Para trás. Para trás fica uma paisagem. Lisboa, Portugal. Um pais governado por merceeiros. Salazar, Caetano, ambos com os seus respectivos e inseparáveis lápis atrás das suas respectivas e soturnas orelhas. Contas de somar. Contas de sumir. Contas de somar e de sumir. As continhas certas senhores, as continhas certas. O aprumo nos costumes exacerbado ao limite do patológico. Um povo amordaçado, tristonho, quase orgulhoso na sua pequena e infeliz mediocridade. Um povo curvado. Olhando atentamente para o chão, para um chão conspurcado. Escarros. Sílabas pronunciadas entre dentes que não chegam sequer a palavras. Uma tenebrosa ausência de sentido. Plêiades de olhares ausentes perscrutando o chão das ruas. Não olham em frente, não olham para cima. Parecem evitar o encontro com o outro. Talvez temam no encontro com o outro o encontro com um qualquer delator. Ou talvez temam verdadeiramente o encontro consigo próprios e com os seus mesquinhos mundos, as suas mesquinhas existências de moços de recados e criados de servir. Os olhares que não se encontram. Os olhares que não se cruzam. Os olhares que se temem. Que se refugiam no chão. Num chão conspurcado pela pobreza. Um conspurcamento que se transmite aos espíritos. Macadame. Calçadas. Pedras sujas, imundas. Mais que a pobreza nas ruas, a pobreza nos espíritos. A mais completa ausência de espiritualidade. Uma plêiade de fantasmagóricas personagens cruzando as ruas.  


Para trás fica uma paisagem, um pais.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - XIV

Entrevista a Sebastien Void

XIV

Rui Carvalho: a fama e o sucesso têm a sua antítese no fracasso. O ser para a fama exclui a possibilidade do fracasso. Como subsiste a miriade de fracassados que jamais atingem a meta teleológica do sucesso?

Void: o fracassado é um ser excluído. É um ser excluído a não ser que se torne figurante. O figurante é aquele que gravita a fama dos outros. O compartilhamento da fama dos outros reintegra o fracassado na trama do sucesso. O fracassado participa na farsa como figurante. O fracassado é uma figura de segundo ou de terceiro plano. É, contudo, uma personagem essencial na consecução da trama. Sem a figura do figurante seria de todo impossível alimentar e desenvolver a trama, a farsa do sucesso. Há uma relação umbilical entre a necessidade de visibilidade dos famosos e bem sucedidos e a necessidade de inclusão dos figurantes. Sair fora da farsa é uma possibilidade a evitar a todo o custo. O excluído é tido como um paria, é olhado de soslaio. O excluído é tido pelas massas como um imbecil que se nega ao compartilhamento. É o alguém que precisa ser exumado das relações de familiaridade que se estabelecem entre todos os outros ninguém. O alguém é o alguém que estabelece as diferenças. O alguém é diferente de todos os outros. O alguém difere de todos os outros. Por isso mesmo, o alguém é o alvo a abater. A diferença. A diferença do alguém é visada como uma falha no sistema. O sistema requer a possibilidade de todas as similitudes. No sistema tudo necessita ser similar. A similaridade é a precondição do erigir da fama. 
O alguém é o excluído que tem obrigatoriamente que percorrer o seu próprio caminho. O excluído é o que sai dos trilhos. Saindo dos trilhos necessita criar o seu próprio trilho. 
O caminho. O caminho faz-se caminhando. Essa é a verdade do caminhante. O excluído torna-se caminhante. É alguém que trilha o seu próprio caminho de verdade. Essa é uma tarefa espinhosa e difícil. O excluído está só. Estando só, erige-se na solidão. O erigir-se na solidão é uma tarefa espinhosa. É bem mais fácil trilhar os trilhos de todos os outros, seguir os passos de todos os outros. O atavismo e a mimese possibilitam-nos habitar um mundo já feito. Na familiaridade do mundo já feito e já dado não é necessário mexer um dedo que seja. Tudo cai em nosso regaço. Não é necessário pensar, basta que vaguemos a trama do sucesso 

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Excerto do inédito "Visitação" - Rui Carvalho

Gravito em torno de meu umbigo. É isso. Gravitamos em torno de nossos umbigos. Somos habitados pelo mal, desde o início dos tempos. Desde o princípio dos tempos, nossos corações, nossos corações são sinalizados na ambiguidade. O coração humano é um local ambíguo. Na ambiguidade tornei-me cínico, capaz de matar. Com o tempo, no correr do tempo fui arrancado a meu coração. Em seu lugar cicatrizou o mal. Sou o mal cicatrizado. Não já em ferida. A ferida foi suturada. Sou a cicatriz de minha infância. Por vezes julgo ser possível, por vezes julgo poder regressar, regressar à longínqua inocência. Regressar ao longínquo lugar de todas as possibilidades. Ter uma bola nos pés ou um berlinde entre mãos. Ter uma bola nos pés ou um berlinde entre mãos e o mundo ser isso mesmo. Só isso, nada mais. Por vezes julgo poder voltar a adormecer cansado de tanta clareza. Voltar a adormecer tocado pelo sol, pelo distante marulhar das águas tocando as areias da praia. Contudo, somos rios que não voltam à nascente. É isso. Desaguamos no mar. Desaguamos o imenso oceano da dúvida. Por vezes venho à tona. Por vezes dou à costa, junto com os demais detritos. O oceano é imenso, o oceano é demasiado para ser sequer pensado. Com o tempo. Com o correr do tempo tornei-me uma constante insónia. Com o tempo, com o tempo fui perdendo a capacidade de afecto. Tornei-me duro. Firme como rocha. Pelo menos por fora. Somos personas. Somos personagens numa farsa. Representamos papéis. O meu papel é a dureza. Embato-me com o mundo. Foi para isso que fui treinado. Treinei-me para vencer o mundo, para abrir passagem. Em Jerusalem. Em Jerusalem somos aclamados salvadores. Em Jerusalem, em Jerusalem somos chamados genocídas. Depende do ponto de vista de quem nos olha. Tal qual o coração, tal qual o coração, também o olhar é um local ambíguo. Somos ambíguos por todo o lado. Somos percorridos pela ambiguidade. É isso. Somos o melhor e o pior de nós mesmos. Para nós e para os outros. Fui treinado para a luta, para matar ou morrer. Lutei pela divina promessa da Terra arável junto ao rio. Sou orgulhoso de meu povo. Sou orgulhoso do padecimento. Sou orgulhoso da tormenta e da aflitiva escassez. O padecimento adaptou-me, tornou-me apto a sobrevir as piores circunstâncias. 

domingo, 13 de novembro de 2016

Excerto do inédito "Visitação" - Rui Carvalho

Defronte uma mesa sempre igual, junto ao pão endurecido e algum leite coalhado servindo de alimento. Assim me arrefeço na desordem, dedos e mãos gretados pelo frio. Há quem julgue ser fácil estar aqui, depressa e vagamente. Há quem julgue fácil co-habitar toda a tristeza. Há quem jamais se tenha habitado, nem um dedo que seja. Há quem, após ter partido uma unha, julgue que o mundo se lhe partiu. Eu, que na desordem me reconheço, estendo a mão às circunstâncias de minha vida, como se Te re-visitasse. Aceito o mal que me chega. Aceito que me sejam reabertas as feridas suturadas. Aceito não mais regressar, não mais regressar a minha infância. Aceito ser perdido, gasto nas possibilidades. Tudo aceito. Tudo aceito, excepto a miséria. Não apenas a miséria do corpo. Não apenas a miséria do corpo, mas sobremodo a miséria do espírito. A miséria provindo do mal, o mal natural. Eis o que não aceito. Aceito a culpa. Toda a miséria é culpa nossa. O mal social. O mal social é da nossa responsabilidade. Somos seres carnívoros. Enquanto seres carnívoros praticamos o mal por necessidade. Há uma necessidade ôntica, imediata, que deriva da nossa necessidade de sobrevivência. Essa necessidade imediata sustenta-nos a apetência pelo mal. É a interiorização social da nossa apetência pelo mal que nos leva a sublimá-lo como algo natural. A socialização do mal invade-nos. Somos invadidos pela socialização do mal. Assim nos sucumbimos. Gastos pelos dias. Gastos pelos dias irrompendo-nos a maldade. Sobrevindo na miséria. Baixando os olhos. Baixando os olhos sem mais ver. Defronte nos esquecemos a comiseração. Somos determinados. Somos predeterminados ao sucesso. Tudo o que conta é o sucesso. No sucesso somos sucedidos. Sucedemo-nos sem deixar rasto, como vagas fluindo as marés. O que conta. Tudo o que socialmente conta é o que jamais deveria contar. O que conta. O que verdadeiramente conta, o que verdadeiramente deveria contar é a  aposta, a intensidade da aposta. Apostar e não o ser apostado. Ser a-social, ser insocial. O que conta é a aposta, é a escolha de um determinado modo de vida em detrimento de todos os outros. O que conta é a importância de se saber jogar em detrimento de se deixar jogar. Não que o modo de vida escolhido possa ser ontologicamente melhor ou pior que qualquer outro, ou, que faça mais ou menos sentido que qualquer outro. É a escolha, a determinação na aposta feita, que torna relevante um determinado modo de vida. Aquilo que é determinante é a constância, o grau de vontade e persistência com que se realiza a aposta (veja-se o exemplo do Hindu que, sentado e sem se mover, constantemente repete durante anos a palavra “redenção"). A redenção. O que conta é a redenção. Praticar o mal para que nos redimamos do mal. 

Acerca da questão de se ser ou não ser em função de uma pre-determinação.




O que conta é a aposta, é a escolha de um determinado modo de vida. O que conta é a importância de se saber jogar em detrimento de se deixar jogar. Não que o modo de vida escolhido possa ser melhor ou pior que qualquer outro, ou, que faça mais ou menos sentido que qualquer outro. É a escolha, a determinação na aposta feita, que torna relevante um determinado modo de vida. Aquilo que é determinante é a constância, o grau de vontade e persistência com que se realiza a aposta (veja-se o exemplo do Hindu que, sentado e sem se mover, constantemente repete durante anos a palavra “redenção"). 

sábado, 12 de novembro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Cronos

                      No início não se fez luz
                      e o verbo foi um acto de vingança
                      o esperma de Urano diluindo a via láctea,
                      pingando-nos
                      desde o ódio de Cronos.

Escape from noise series, n.º 1 - by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - XIII

Entrevista a Sebastien Void

XIII

Rui Carvalho: o engodo quantitativo da publicidade implica que sejamos jogados pelos  actos publicitários. O ser jogado na publicidade implica a ausência de autodeterminação. No jogo publicitário somos seres predeterminados. Estamos predeterminados ao sucesso. O foco de sentido das nossas vidas cinge-se a atingir a fama e o sucesso. Sendo que a fama e o sucesso se erigem no plano quantitativo dos actos publicitários, não será que o atingir da fama e do sucesso estão indelevelmente ligados à falta de carácter e de personalidade? Não é esse um dos males da modernidade?


Void: a fama e o sucesso são os focos de sentido da modernidade. Trata-se de sobressair, trata-se de nos sobressairmos para agradar às massas. As massas são constituídas num ponto de vista único que é comum a todos os participantes da massa. Há uma determinada perspectiva da realidade que é compartilhada por todos os que enformam a massa. Os participantes da massa são figurantes. Os figurantes figuram, estão em segundo plano. Na maioria das vezes os figurantes não estão sequer em segundo plano, estão tão lá atrás que as suas existências não são sequer visíveis. Os figurantes existem no vislumbre da fama e dos famosos. O seu contacto com a fama e o sucesso cinge-se ao gostar de tudo que todos gostam. As revistas do coração e as grelhas de audiências televisivas dirigem as vidas dos figurantes. Os figurantes vêem e ouvem o que lhes é prescrito ver e ouvir. Sim, neste contexto a fama e o sucesso estão indelevelmente ligados à falta de carácter e de personalidade. Pelo menos é quase sempre assim. No fundo trata-se de agradar às massas. Uma vez que para distinguir qualidades é indispensável conhecimento, e uma vez que a ignorância das massas apenas lhe permite aceder às qualidades através de critérios quantitativos, segue-se que a fama e o sucesso são quase sempre sinônimo de algo qualitativamente inqualificável. Um “bom actor” ou um “bom músico”, por exemplo, não necessitam ser intérpretes de excelência. O bom actor e o bom músico são aqueles que se prestam a receber a maior quantidade de aplausos por parte do público. A modernidade trouxe-nos o fenómeno da massificação do gosto. A massificação do gosto não é propriamente um fenómeno novo. O que é novo é o facto da modernidade nos ter trazido a possibilidade do gosto ser partilhado por um numero quase ilimitado de pessoas. A massificação do gosto, ou melhor, a massificação do mau gosto foi elevada a um nível quase ilimitado. A massificação do gosto é correlativa ao advento da globalização. Antes do advento da globalização o mau gosto era mais democrático. Existiam vários nichos de mau gosto. Havia toda uma miriade de grupos de figurantes a gostar de uma outra miriade de objectos medíocres e inúteis. A modernidade trouxe-nos um novo especimén, o artista moderno. O artista moderno é aquele cujo foco se dirige justamente ao atingir da fama e do sucesso, ou seja, o artista moderno está focado na sua capacidade para convencer ou seduzir as massas. É em torno desse objectivo que é desenvolvida a sua carreira. O objectivo do artista moderno não é atingir a excelência, mas sim o encontro com a fama. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Instantâneos


Entre gumes e facas acessas foi onde nos ficámos, meu amor
aqui nos abandonámos a ternura

fomos cortantes como espadas, 
até ao assombro recolhendo-nos a esperança

agora, aqui é tarde, agora é sempre tarde                                                                    

                                                                 e o futuro nenhum é.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - XII

Entrevista a Sebastien Void

XII

Rui Carvalho: O infra-conhecimento e o sobre-conhecimento constituem dois planos que, à partida, parecem ser absolutamente antagónicos entre si. No entanto, ambos são sinalizações do âmbito das trevas. Como podemos nós escapar então à penumbra? Se é que nos é possível fazê-lo.

Void: A nossa existência é-nos dada através das nossas experiências. Sendo que essas mesmas experiências nos são pessoais e intransmissíveis. Existimos nas nossas experiências. Todas as nossas experiências nos são interiores. Tudo o que nos é dado conhecer é fundado em estados interiores e pessoais. É impossível estabelecer uma relação direta entre os nossos estados interiores e o conhecimento objetivo de uma realidade exterior, de uma realidade fora dos nossos actos noéticos. Somos o nosso acto de pensar. Os nossos actos noéticos enformam-nos, entificam-nos como um eu. Tudo mais parece poder ser contestado ou posto em dúvida. O solipsismo implica precisamente o resplandecer da dúvida, sendo que o resplandecer da dúvida se erige na procura pelo rasgo da claridade. O rasgo da claridade constitui o primeiro indício do abandono da nossa sitiação nas trevas. A liberdade de espirito, a libertação do espirito relativamente aos ditames da publicidade é o primeiro passo a ser dado. A publicidade germina no seio da multidão. Os muitos são a representação de uma entidade abjecta. É contra a ditadura da multidão que o espírito livre necessita rebelar-se. É lutando contra a ausência de espírito que é característica da multidão que o espírito se liberta e adquire consciência de si e da sua realidade concreta. De modo a ser dada a possibilidade da existência concreta do espírito livre, é pois indispensável, antes de mais, que se verifique a pre-existência de uma entidade espiritual. Ora a pre-existência de uma entidade espiritual é correlativa a uma vivência determinada, que no caso do humano se concretiza na experimentação de um eu que se debela contra um mundo que lhe é adverso. A adversidade que nos é imposta pelo mundo exterior constitui-se como primeiro nível de constituição e constatação da situação em que se está. Sendo que este sitiamento não nos é dado sem mais, uma vez que implica um esforço de tematizacão e determinação. A tiranizarão quantitativa imposta pela publicidade implica que mesmo as qualidades só possam ser avaliadas através do recurso a critérios quantitativos, sendo que esse facto torna problemático não apenas o perscrutar axiológico da realidade, mas sobremaneira o erigir do próprio conhecimento enquanto tal. Somos subjugados na tirania quantitativa e, enquanto permitirmos que assim seja, jamais estaremos aptos ao conhecimento, sendo que não estando aptos ao conhecimento é-nos impossível estabelecer qualquer contacto com a axiologia valorativa, e muito menos estabelecer qualquer hierarquia valorativa. Estando longe da tematização da situação em que nos encontramos estamos sujeitos a ser embalados no engodo quantitativo da publicidade. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Twighlight series, n.º 4 - by Steven Space


"Há um brilho, uma luz que não é originária da correlação mecânica dos interruptores com o fenómeno eléctrico. Nada que possa ser relacionado com disjuntores, amperes, watts ou outras quantificáveis unidades de medida. A conexão à luz é outra. Há um brilho. Essa é a evidência. Qual a proveniência de um brilho tecnicamente inexplicável? Como discernir um brilho não descritivel? Como explicar um brilho não descritivel na era de todas as descrições? Como explicar o inexplicável?"

Sebastien Void

domingo, 6 de novembro de 2016

Twighlight series, n.º 3 - by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - XI

Entrevista a Sebastien Void

XI

Rui Carvalho: A iluminação é, então, uma experiência pessoal e intransmissível. Tal significa que o Iluminismo não nos acrescentou nada em termos colectivos e que continuamos a viver numa espécie de trevas medievais? 


Void: As trevas constituem uma categoria ou uma condição ontológica e não propriamente uma condição histórica. Não existe um antes e um depois das trevas. O esclarecimento da razão, o pretenso grande feito do Iluminismo, é uma falácia como qualquer outra. O advento Iluminista e a sagração do método científico abriram os caminhos da instalação do relativismo positivista. Sendo que o relativismo positivista culmina na total supressão da problematicidade existencial e ontológica. Sem problematicidade, os modos de relacionamento da razão consigo própria e com a realidade circundante tornaram-se cada vez mais débeis. O esclarecimento da razão implica, de certo modo, a debilidade da razão. Antes do período Iluminista as trevas derivavam da infra-informação e do infra-conhecimento. A penumbra da razão era resultante de toda uma superestrutura histórica na qual a realidade se encontrava soterrada pelos dogmas da religião. O principal aspecto positivo do movimento Iluminista foi ter-nos liberto dos dogmas religiosos. Contudo, o culminar do Iluminismo no relativismo positivista e na supressão da problematicidade, conduz-nos a uma espécie de desinstalação da dúvida. Se as trevas medievais eram resultantes da infra-informação e do infra-conhecimento, as trevas hodiernas derivam do seu contrário, ou seja, do excesso de informação e do sobre-conhecimento. O excesso de informação. Somos soterrados no excesso de informação. Soterrados no excesso de informação somos cegos à dúvida. Cegos à dúvida somos incapazes de ousar saber, de Sapere aude! Enquanto acontecimento histórico, o Iluminismo é pois um acontecimento contraditório. Tendo-nos liberto dos dogmas da religião, acabou por soterrar-nos numa espécie de endeusamento da razão humana. O advento da  supressão  da problematicidade existencial e ontológica é um acontecimento que nos devolve às trevas. Desta vez não já às trevas do infra-conhecimento, mas às trevas do sobre-conhecimento. 

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Twighlight series, n.º 2 - by Steven Space


A kind of poetry - por Rui Carvalho

Adão

No principio era o verbo,
    e o verbo florescia na dor.

Todos os vocábulos me eram indizíveis,
 até que alguém apontava: 
      isto é uma maçã;
      isto é a substância de todas as coisas. 

Então,
todo o meu ser me era dado de encontro 
à agridoce dureza das macieiras,
                das improváveis macieiras dando fruto.

Chamaram-me Adão.

Adão, aquele que cuida das macieiras,
aquele que cuidando das macieiras adquirira a substância do mundo.

Através do fruto que me era dado provar tornei-me cínico,
capaz de matar.

Questionava-me porquê, 
mas as respostas não chegavam a mim,

apenas me seria dado saber o domínio dos vocábulos 
e que o domínio dos vocábulos me traria esta dor,

esta dor imprecisa, 

transcorrendo dos infindáveis pomares duvidando em mim.