Translate

domingo, 29 de outubro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XVI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Caímos no mundo após o romper das águas e é essa queda que nos cria o espanto das coisas.  
De qualquer modo, deverá existir uma razão desconhecida que justifique o nosso choro. Talvez o oxigénio pela primeira vez inalado. Damos por nós resgatados ao útero materno e poderá ser essa uma das razões que justifica a dor em nossos pulmões. Repletos até à imanência do vácuo somos então pegados ao colo.
Comigo foi assim: em criança devo ter-me assustado com o reflexo da minha própria monstruosidade. A minha sombra reflexa no chão deve ter-me causado medo. Então, por alguns dias deixei de andar. Recusava-me a andar, pura e simplesmente. É deveras assustadora a nossa sombra no chão, o nosso reflexo numa qualquer parede. 
Levei tempo a perceber que o meu corpo faz parte de mim. 
Até determinada altura sentia-me prisioneiro, essa vivência do aprisionamento tornava-me estranho. Como se tivesse de mover toneladas para me mover a mim mesmo, para dar um simples passo em frente. 
Só depois a luz chegou, muitíssimo depois. 
Houve um instante em que transpareceste. A luz reflexa em teu rosto iluminou-me o mundo e só então me habituei a mim. Agora já não temo o meu corpo, não sinto sequer a anterior estranheza. 

Deve ser isto a reminiscência: recordar-me de ti como luz, conseguir andar sem receio. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Útero - XIII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Procuro na água a fundura dos poços. Sim, mesmo desconhecendo qual a razão que funda todas as assimetrias. 
Continuo a procurar. 
Fogo e água são opostos desde há muito identificados. Contudo, não foi ainda possível discernir com clareza qual o sentido da angústia, qual o motivo que nos distancia uns dos outros. 
Será por sermos cegos que não vislumbramos um passo que seja à frente dos nossos olhos? Deve ser isso, o nevoeiro é uma viagem agreste e nós não estamos aptos a ver o fundo das coisas. 
Somos gente superficial, tragando cerveja nos cafés. E as mulheres, em casa, tricotam a vida que não tiveram. 

Não. Não deve ser aqui que te encontro. Os ponteiros marcam as horas e o tempo é infalível. 

Pronto. Já está. É chegada a hora de partir. E eu, eu que tenho pleno conhecimento das horas. Como sei bem quanto as horas são exangues. 
Olho para cima e vejo o vácuo cingir-me nesta inanidade. Como deixei cingir-me? Recordo-me que dantes vestias vestidos vermelhos e o teu decote era simétrico aos meus olhos. 
Agora, agora há qualquer coisa que falta. Uma chama talvez. Uma chama, exacto. Uma chama que possa reunir-nos em torno deste desespero. 
Não, não basta não nos vermos. Não basta não querermos ver o que quer que seja. Não basta cerrarmos os olhos, tornarmo-nos fantasmas de nós mesmos. Seria necessário que fossemos tolhidos pelo mesmo comboio, aquele que está prestes a partir para depois regressar novamente. Seria necessário que a linha férrea se tornasse a nossa cama de sempre, para sempre. 

E agora? E agora que tudo arde? O que fazer quando tudo arde? 

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Ao contrário de Ricardo III: o meu reino por teu Amor.

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 22 de outubro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Em baixo, rente à mudez do solo, há uma longa planície aguardando a água, o incendiário  regresso do verbo. 
Fiat. 
Faça-se o início desde o início, e desde o início seja outro o mundo. Que tudo se inicie em Eva e Adão e na certeira serpente. Que haja maças em demasia e que as demasiadas maçãs sejam para sempre trincadas. Bem assim, hajam anjos desnudos dançando-nos os corpos. Que em Eva haja a macieza do toque, a florescência dos sentidos, e que em meus dedos haja o secreto dom da alegria. Que os anjos nos ensinem a proeza dos corpos inflamados no sopro da vida, e que nossas línguas possam ser dançadas até à exaustão. Que então nos possamos completar até formarmos o vicejamento do todo.  
Em baixo, rente à mudez do solo, poderei escutar o marulhar das águas. Seguindo o rasto das águas acercar-me-ei dos oceanos. Estarei na berma, aguardando a chegada das baleias - de Jonas, o meu regresso.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Sobre toda a escuridão - X - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Permaneço sentado, com a cabeça entre as mãos. Assim me reservo a embriaguez dos lugares. Dirijo-me ao centro das coisas para que ai me possa habitar, tornar-me rente aos precipícios, todos os locais onde me faça cair. 
Como uma chuva de flechas certeiras, que a verdade sobre mim se abata. Que seja o mundo uma realidade incompreensível e que ainda assim me possa restar ao gritante desespero. 
De qualquer modo, correrei célere após o cansaço. Abrirei os braços como asas sobre o mar e assim permanecerei. Haverá um instante em que serei seguro, seguirei a sombra dos meus gestos, o mais intenso dos percursos. 
Nada há após a morte. Nada excepto o brilho do que fica. 
É essa a única luz que me interessa, a das estrelas cintilando rente aos olhos dos viventes. 

Deus disse: que a luz se faça! 

E no instante a luz se fez.


Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 15 de outubro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XIV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Que a realidade se inverta, que espaço e tempo se convertam no seu contrário. Que a temporalidade transcorra, da frente para trás. Que no início de tudo esteja a morte e a morte transcorra o percurso até à vida. Quanto à espacialidade, rapidamente nos adaptaremos a tocar o cume das coisas. A copa das árvores tocará nossos pés, e isso tornar-se-á um hábito. Habitaremos então o solo como quem habita a sua casa de sempre.
Que o mundo possa aguardar nossa chegada, aqueles que na mortandade buscam o toque da vida. Os que na morte soam as inequações, as incógnitas e as variáveis, os gestos até ao findar do medo. 
Com as vozes ecoando ouviremos os relâmpagos; trovejaremos a ausência de sentido, e, na ausência de sentido, desocultaremos os milagres. 
De qualquer modo, mais facilmente atingiremos a proximidade dos deuses. 
Que sejamos tão inexistentes quanto as profissões que aqui nos moldam. Que as profissões não se colem a nossas peles e assim estejamos mais perto da transparência. 
Quando olharmos os espelhos serão os espelhos a olhar-nos. Viveremos uma espécie de animismo, uma intensa correlação com as coisas em redor. 
Sim:
“We are the children of the sun” 
and, yes:
“our journey’s just begun!”


Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Sobre toda a escuridão - IX - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Segundo parece, a realidade é imbuída na mecânica do salto. Tudo terá começado a existir no salto dado de um vazio para outro vazio, com um outro vazio pelo meio. Desde o início dos tempos nada mais houve a não ser essa profusa repetição. 
Também o humano é um ser repetivel. Jamais deixámos de ser a repetida profusão de vazios sobre vazios. 
De tempos em tempos julgamos poder prosseguir a marcha; até porque há saltos que nos levam desde não sabermos onde até não sabermos onde. Ainda assim, não podemos escapar à acessa mania de nos situarmos. Criamos lugares fictícios onde julgamos poder fixar-nos, e aí mimamos os figurinos da alguma felicidade. Vestimos fatos pré-feitos que achamos ficar-nos bem.
Contudo, é o umbigo, são os nossos umbigos que nos centram o mundo. Pouco mais somos que essa peculiar cicatriz. Após termos chamado a nós o poder gravitacional do mundo não existirá mais nada a fazer a não ser mantermo-nos sustidos na força de Atlas, suportando o peso da realidade com os nossos ombros. Quando nossos ombros ruírem, nossas vidas ruirão com eles.

De qualquer modo, que outra coisa poderia existir no hiato entre a não vida e a vida, entre a  unicelularidade e a pluricelularidade, que outra coisa que não o incompreensibilidade do vazio?

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XLI

XLI
Rui Carvalho: podemos afirmar que a imposição do não valor como valor e a imposição do medo como fonte de governação derivam de uma mudança de paradigma ou implicam uma mudança de paradigma relativamente ao funcionamento económico/social das nossas estruturas societárias?

Void: sim, podemos afirmar que estamos perante uma radical mudança de paradigma nas nossas estruturas societárias. O modo de funcionamento da actual civilização ocidental e ocidentalizada assenta no triunfo, no completo domínio do sistema financeiro sobre todos os restantes vectores sociais. 
O domínio da alta finança é elaborado, é construído mediante uma completa e radical mudança de paradigma. Através de uma radical mudança estrutural no modus operandi da infra-estrutura económica que sustenta as nossas sociedades. Uma mudança estrutural que só poderá ser sustentada se for construída com base numa superestrutura financeira, superestrutura essa que terá necessariamente que ser implementada a nível mundial. A implementação dessa superestrutura é materializada na criação dos denominados mercados financeiros. Os mercados financeiros permitem a criação e multiplicação artificial da riqueza através do advento da especulação financeira. A riqueza. A riqueza que no anterior modus operandi económico era construída ou adquirida de um modo dialéctico, isto é, o denominado investidor ou empreendedor necessitava sempre da força de uma mão de obra que lhe permitia implementar o seu propósito de enriquecimento, passa a poder ser gerada sem mais, sem o recurso ao factor trabalho. O trabalho. O capital. A dialética trabalho/capital. Havendo a necessidade do processo dialéctico estabelecido entre um empreendedor e uma quantidade mais ou menos elevada de obreiros capacitados para levar a cabo a edificação do seu empreendimento, era sempre estabelecido um certo equilíbrio de forças, equilíbrio de forças esse que era adquirido quase sempre negocialmente e que estabelecia um equilíbrio entre os interesse do empreendedor e os interesses dos obreiros do empreendimento. Neste contexto, a existência dos sindicatos era uma condição fulcral para que fosse atingido o referido equilíbrio de forças e interesses. Com o triunfo do sistema financeiro esse equilíbrio de forças foi completamente erradicado. No seu actual modo de funcionamento o sistema financeiro possibilita a criação de riqueza a partir do nada. Os produtos financeiros são a pedra de toque para a criação de riqueza. A riqueza é criada e auto-multiplicada de  um modo completamente artificial. Através do investimento nos denominados produtos financeiros os investidores deixam de ter de preocupar-se com investimentos que apenas criam riqueza a longo prazo. Mais ainda, os ricos investidores deixam de ter que preocupar-se com sindicatos e trabalhadores. Os investidores têm nos mercados financeiros o seu grande instrumento de poder. 
Sim, estamos a vivenciar uma radical alteração de paradigma. A dialéctica capital versus trabalho foi substituída pela mitologia do pensamento único.

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 8 de outubro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XIII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Leva-nos uma vida inteira o afinamento das cordas para serem tocadas. 
Após a acmé resta-nos aguardar: os gestos oblíquos dos deuses ou a fala agreste dos demónios. Pouco importa, desde que sejamos dados como música, que em nossa pele façamos vibrar a musicalidade do mundo. 
De qualquer modo, é fundamental saber invejar a inteligência das pedras, aguardar que nossos pés flutuem até à lisura do escorregamento. 
Ao rasarmos o vácuo estaremos já perto daquilo que o futuro nos reserva. Será esse o momento em que nos mostraremos aptos para testar o salto. 
Saltar ou não saltar depende do talento para a queda, para o exercício da acrobacia. A execução do salto implicaria cair com os pés já fora do chão, já fora do mundo. 
Seria necessário estarmos aptos. Sermos férteis de equilíbrio, da dose de estranheza necessária ao vislumbre, ao acompanhamento da velocidade do milagre.

Sim, a verdadeira Fé é muito para além da loucura.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 7 de outubro de 2017

Breve curso de introdução à economia Grega - VII

Itaca

Sobre as águas me ergo e, sem caminhar, contemplo o mar alagando teu rosto.
Ao largo, ancorados na breve língua térrea 
quatro pés sulcam as águas do mar Egeu,
plenamente sentindo a Terra
o feroz fragor dos oceanos.

Não tentes nada Calipso, nada, 
peço-te,
é inútil sorrires.

Penélope, amor que me aguardas 
Itaca é o meu destino.


Rui Carvalho, s. d.


quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Útero - XII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho


Quando iniciei o Outono ainda a morte não era profusa. Contudo, a desolação da paisagem indiciava já uma prodigiosa solidão. Junto às folhas amarelecidas sentei os primórdios da minha vida e, sentado, aguardei o devir, a água tombando a rodos. 
Todos os anos aqui voltei. 
Todos os anos aqui voltarei. 
Todos os caminhos me trarão aqui, ao simbolismo das folhas aguardando o meu corpo. Esse breve amarelecer do céu devolvendo-me a impossibilidade da permanência. 
Virá um dia em que tudo será distante. Então, com os olhos partindo abrangerei a visão de outros mundos. 
Um dia virá esse dia. 
Virá um dia em que tudo será distante. 
Um dia. 
Um dia haverá o rápido instante da partida.

Deixarei então partir meus olhos. Serei a rápida visão das águias.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

terça-feira, 3 de outubro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XL


XL
Rui Carvalho: E quanto à imposição do medo como fonte de governação?
Void: A imposição do medo como fonte de governação é um advento que está directamente relacionado com “a tese do fim da história”. Sendo que a tese do fim da história se relaciona por sua vez com o fenómeno da “astúcia da razão” e com o seu modo de funcionamento. A astúcia da razão tem um funcionamento fenomenológico que lhe é próprio. O progresso histórico não deriva de um continuo desenvolvimento “racional” das sociedades humanas. Pelo contrário, é a cegueira da paixão que impele os homens para o conflito, para a revolução, para a guerra. A astúcia da razão. A razão não é um fenómeno puramente “racional”. A racionalidade é imbuída na paixão. É imbuída na paixão que a racionalidade adquire a forma da astúcia da razão. A astúcia da razão é o advento que faz funcionar o mundo, que faz mover o mundo. No seu funcionamento, a astúcia da razão desenvolve-se dialecticamente, não obedece propriamente a um processo histórico de índole evolutivo. Ao discernirmos a história da razão humana estaremos desde logo a discernir, também, o modo de funcionamento do mundo. A razão funciona, desenvolve-se de forma dialéctica. A razão humana prescreve-se num intenso processo de conflito consigo mesma, ocorre num intenso processo de continuados conflitos internos. A dialéctica. A dialéctica é a força motriz da razão. Sendo a força motriz da razão é também a força motriz que move o mundo. A história humana corresponde a um processo de avanço continuo no cerne da conflitualidade. Os conflitos. A conflitualidade. A conflitualidade colide os diversos sistemas de pensamento, os variados sistemas políticos colidem e desmoronam. As contradições internas dos sistemas conduzem os sistemas ao colapso. Os antigos sistemas desmoronam e são substituídos por outros menos contraditórios. 
A dialéctica. 
A questão que se coloca é se existirá um fim para o processo histórico? Se é possível conceber o fim da dialética? Se é possível conceber a razão humana destituída das suas contradições internas? Se é possível conceber um mundo sem contradição? Sendo a contradição imanente no mundo, como pode haver mundo sem contradição? Como poderá haver um mundo sem mundo? Um mundo de onde a dialéctica se ausentasse seria um mundo perfeito, um mundo no qual existiria a liberdade plena e a plena felicidade. Será alguma vez possível a realização da liberdade na terra?
O neo-liberalismo vende-nos essa ideia, a ideia que se encontra finalizado o processo de realização da plena liberdade, da plena felicidade na terra. O neo-liberalismo defende que o processo histórico não é algo que possa progredir indefinidamente. Segundo a propaganda neo-liberal, o processo histórico caminha para um fim, sendo que esse fim é justamente o neo-liberalismo.  A teleologia. A crença teleológica na implementação de sociedades de tal modo livres que não haja mais liberdade a conquistar. A conquista da felicidade plena. O fim da história. A plena conquista da liberdade e da igualdade são os princípios fundamentais do moderno estado liberal. O estado liberal é tido como estando ausente de contradições internas. O estado liberal traz-nos o fim da dialéctica, o final da história. O moderno estado liberal. O moderno estado liberal é a  personificação da liberdade, do progresso da história universal da humanidade até à elevação do homem à racionalidade plena. A racionalidade plena é alegadamente expressa no liberalismo.
As sociedades liberais assentam na conquista dos mais elevados graus de riqueza material e de estabilidade política. São sociedades, alegadamente destituídas de quaisquer resquícios de contradições internas fundamentais. São sociedades auto-satisfeitas e auto-sustentadas nas quais ocorre o mais livre fluir da actividade económica. A modernização. A modernização é implementada através da conquista de níveis de riqueza e prosperidade sem precedentes. O desenvolvimento industrial. O desenvolvimento industrial é guiado num padrão de crescimento coerente. Tão coerente que acaba por originar determinadas estruturas sociais e políticas universais e uniformes nos diversos países e culturas.
O medo é-nos imposto a partir da instalação da ideologia da crise. A ideologia da crise faz-nos temer a astúcia da razão, faz-nos temer a dialética do mundo. A ideologia da crise mostra-nos um único caminho possível, a rendição, a total submissão aos mercados financeiros, às premissas que nos são impostas pelo funcionamento dos mercados financeiros. Os mercados financeiros são-nos dados como uma espécie de Deus ex-machina que faz mover o mundo, que impede a prossecução da conflitualidade. É-nos inculcada a ideia da desobediência como pecado. O grande pecado do mundo é a desobediência ao funcionamento dos mercados. Somos soterrados no medo da desobediência. A desobediência dos estados ao funcionamento dos mercados tem um preço, a bancarrota, os resgates financeiros, a vinda dos abutres, do FMI e das organizações supra-estatais designadas como Troica. O medo, somos governados pelo medo, somos soterrados pelo medo. 

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 1 de outubro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



O mundo inicia-se no sopé das coisas, na radical proximidade com o solo. No início há uma adaptação ao meio ambiente, qualquer coisa como uma aprendizagem da queda. Numa primeira fase trata-se de nos adquirirmos na posição bípede. Para tal é necessário arrastarmo-nos sobre quatro patas num longo processo de tentativa e erro. 
Após várias quedas estaremos aptos para nos exercermos no andar. Pé ante pé atingiremos o equilíbrio, a plasticidade motora que nos distinguirá da mera animalidade. 
Quanto à espiritualidade nada funciona assim, são raros aqueles que deixam a posição quadrúpede para trás das costas. 
A espiritualidade.
Quanto à espiritualidade, é fundamental que nos saibamos adquirir na habilidade da secagem. A transpiração das mãos. A transpiração das mãos é um óbice à subida. Por conseguinte,  torna-se indispensável a utilização do carbonato de magnésio, dos múltiplos utensílios que nos possibilitem a aderência do corpo às rochas. Sim, a espiritualidade equivale à constância na escalada. Devemos habitar-nos nos íngremes caminhos rasgados nos rochedos. Quanto mais elevada for a nossa posição, mais perto estaremos de nós mesmos. Devemos pois manter-nos na posição mais elevada possível durante o maior período de tempo possível. 
Sim, é o modo como nos posicionamos que revela a nossa situação no mundo.

Subirei os penhascos até alcançar-te.  

                                                              A escalada será íngreme até que possa habitar teu nome.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho