Caímos no mundo após o romper das águas e é essa queda que nos cria o espanto das coisas.
De qualquer modo, deverá existir uma razão desconhecida que justifique o nosso choro. Talvez o oxigénio pela primeira vez inalado. Damos por nós resgatados ao útero materno e poderá ser essa uma das razões que justifica a dor em nossos pulmões. Repletos até à imanência do vácuo somos então pegados ao colo.
Comigo foi assim: em criança devo ter-me assustado com o reflexo da minha própria monstruosidade. A minha sombra reflexa no chão deve ter-me causado medo. Então, por alguns dias deixei de andar. Recusava-me a andar, pura e simplesmente. É deveras assustadora a nossa sombra no chão, o nosso reflexo numa qualquer parede.
Levei tempo a perceber que o meu corpo faz parte de mim.
Até determinada altura sentia-me prisioneiro, essa vivência do aprisionamento tornava-me estranho. Como se tivesse de mover toneladas para me mover a mim mesmo, para dar um simples passo em frente.
Só depois a luz chegou, muitíssimo depois.
Houve um instante em que transpareceste. A luz reflexa em teu rosto iluminou-me o mundo e só então me habituei a mim. Agora já não temo o meu corpo, não sinto sequer a anterior estranheza.
Deve ser isto a reminiscência: recordar-me de ti como luz, conseguir andar sem receio.
Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho