Uma vida. Reflexa na impossibilidade. Transposta, a cada reinício. Cada dia é um recomeço. As luzes apagam, voltam a acender-se. A fragrância dos dias, sofrendo-se-me. Disposição e indisposição. Estou disposto, sou disposto. A disposição centra-me o mundo. O agora. Entre o ontem e o amanhã. Como é ser o agora? Como é a vida? Onde é a vida? Onde é viver?
Agora.
Agora é escolher. Entre as muitas escolhas. Entre os muitos dias. Entre as muitas horas. Como se escolhe a hora certa? Como se faz a coisa certa na hora certa? Não se trata apenas de escolher a hora. A hora certa. Trata-se de escolher a coisa certa na hora certa. Como escolher a coisa certa? A escolha exige a precisão da pontaria afinada. É necessário acertar. É necessário saber acertar. A coisa certa na hora certa. Essa é a dificuldade. Escolher a coisa certa na hora certa. Acertar na escolha é duplamente difícil. A pontaria deve ser afinada. A cada dia. Dando tiros em várias direcções jamais se acerta no alvo. O exercício do tirocínio deve ser refinado. O refinamento executa-se, pacientemente. Com paciência. Os dias vão, os dias vêm. Nada é o mesmo. Nada é o mesmo e tudo é o mesmo. A mesmidade é o exercício do ser outro do mesmo. Mantendo-se o mesmo o devir é o outro de si. A mesmidade é o devir a ser. Na mesmidade nos executamos. Somos o devir em execução. Além da dupla dificuldade do acertar na escolha, somos tolhidos no nosso estar em movimento. Temos de acertar o alvo em movimento.
Agora.
Agora é a vida. E a vida é escolher a coisa certa na hora certa. Escolher a coisa certa na hora certa e no âmbito do devir, no âmbito do estar a ser da mesmidade. Não admira sermos seres falhados. O humano é o ser que falha. O humano é o ser falhado. Nenhum outro animal está sujeito às premissas do exercício da escolha. Os outros animais são regidos no instinto. O instinto é primordialmente o instinto de sobrevivência. Os animais sobrevivem. O humano tem a mania de viver. Melhor, há humanos que têm a mania de viver. O ser humano com a mania de viver é o vivente. Viver é ser contra-natura. O vivente é contra-natura. Somos dispostos, estamos dispostos. Sofremos a disposição.
O mau humor e o bom humor. Somos seres de humores. Os animais não têm humores. Os animais atacam ou não atacam. O vivente vive. O vivente vive atmosfericamente. O vivente é um ser atmosférico. Paira a atmosfera. A atmosfera paira-nos. A atmosfera é a caixa de ressonância onde os dias nos ressoam. Os dias ressoam musicalmente. Os dias têm uma musicalidade. Ouvimos música. Somos música. Somos tocados pela música dos dias. Somos entre a música de partir corações e a música de embalar o mundo. No embalar do mundo somos levados na leva. De enxurrada. Somos levados na enxurrada. Sem que sequer mexamos os pés. O nosso movimento é o movimento dos muitos. Os muitos movimentam-se sem sair do lugar. Levados na leva. A atmosfera do ser levado na leva é a atmosfera da boa disposição. Levados na leva somos bem dispostos. Adquirimos a qualidade do ser bem disposto. A boa disposição inebria. É algo do qual se quer mais. Cada vez mais. Mais e sempre mais. Tornamo-nos adictos da boa disposição. O ser bem disposto implica estar com os outros. A boa disposição partilha-se. Propaga-se. A dado momento todos se riem. O momento em que todos se riem é o epicentro da comédia. Todos aguardam o aguardado momento. O momento em que todos se riem. O riso é uma expressão da musicalidade. Tocados no riso somos presentes na gargalhada. O riso é tanto melhor quanto é rido alto. Alto e bom som. O riso embala-nos. O riso embala-nos no plano atmosférico. Somos perdidos na musicalidade. Músicos. Fazemos música. A cada dia. Vibramos como as cordas de um piano. Tons maiores e tons menores. Escalas. Somos tocados. A disposição do indisposto é uma disposição solitária. O vivente é disposto na angústia. O estar estranho da angústia afasta-nos da multidão. Não acompanhamos o riso da multidão. O riso do angustiado é ao contrário do riso da multidão. O angustiado ri quando ninguém ri. Ri do que ninguém ri. O angustiado deixa o epicentro da comédia. Afastando-se, o angustiado não deixa de ter humor. Tem no entanto um humor mais refinado. O angustiado procura rir a coisa certa na hora certa. O angustiado procura chorar a coisa certa na hora certa. O seu riso e o seu choro, as suas emoções e humores são educadas para eclodir com a coisa certa, na hora certa. O angustiado não é o sem humor, pelo contrário, o angustiado é aquele onde mais vigora o humor. Contudo, o seu humor é um humor atmosférico. É um humor que tem dias. O angustiado é tocado pelos dias, e os dias não são sempre os mesmos dias. Ainda que em parte o sejam. A atmosfera dos dias é ambígua. Há dias bem dispostos e há dias mal-dispostos. O vivente é consoante os dias. Não que tanto se lhe dá como se lhe deu. Contudo, a sua caixa de ressonância é de tal modo sensível que amplifica a atmosfera onde está a viver. Estar mal disposto é dar o primeiro passo. O primeiro passo é um afastamento do rebuliço da boa disposição. É indispensável estar-se fora do rebuliço. Quanto mais fora se está do rebuliço mais perto se virá a estar da claridade. No rebuliço não existe claridade.
O rir do vivente é um rir trágico. O rir do vivente é entre a comédia e a tragédia.