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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Uma vida. Reflexa na impossibilidade. Transposta, a cada reinício. Cada dia é um recomeço. As luzes apagam, voltam a acender-se. A fragrância dos dias, sofrendo-se-me. Disposição e indisposição. Estou disposto, sou disposto. A disposição centra-me o mundo. O agora. Entre o ontem e o amanhã. Como é ser o agora? Como é a vida? Onde é a vida? Onde é viver? 
Agora. 
Agora é escolher. Entre as muitas escolhas. Entre os muitos dias. Entre as muitas horas. Como se escolhe a hora certa? Como se faz a coisa certa na hora certa? Não se trata apenas de escolher a hora. A hora certa. Trata-se de escolher a coisa certa na hora certa. Como escolher a coisa certa? A escolha exige a precisão da pontaria afinada. É necessário acertar. É necessário saber acertar. A coisa certa na hora certa. Essa é a dificuldade. Escolher a coisa certa na hora certa. Acertar na escolha é duplamente difícil. A pontaria deve ser afinada. A cada dia. Dando tiros em várias direcções jamais se acerta no alvo. O exercício do tirocínio deve ser refinado. O refinamento executa-se, pacientemente. Com paciência. Os dias vão, os dias vêm. Nada é o mesmo. Nada é o mesmo e tudo é o mesmo. A mesmidade é o exercício do ser outro do mesmo. Mantendo-se o mesmo o devir é o outro de si. A mesmidade é o devir a ser. Na mesmidade nos executamos. Somos o devir em execução. Além da dupla dificuldade do acertar na escolha, somos tolhidos no nosso estar em movimento. Temos de acertar o alvo em movimento. 
Agora. 
Agora é a vida. E a vida é escolher a coisa certa na hora certa. Escolher a coisa certa na hora certa e no âmbito do devir, no âmbito do estar a ser da mesmidade. Não admira sermos seres falhados. O humano é o ser que falha. O humano é o ser falhado. Nenhum outro animal está sujeito às premissas do exercício da escolha. Os outros animais são regidos no instinto. O instinto é primordialmente o instinto de sobrevivência. Os animais sobrevivem. O humano tem a mania de viver. Melhor, há humanos que têm a mania de viver. O ser humano com a mania de viver é o vivente. Viver é ser contra-natura.  O vivente é contra-natura. Somos dispostos, estamos dispostos. Sofremos a disposição. 
O mau humor e o bom humor. Somos seres de humores. Os animais não têm humores. Os animais atacam ou não atacam. O vivente vive. O vivente vive atmosfericamente. O vivente é um ser atmosférico. Paira a atmosfera. A atmosfera paira-nos. A atmosfera é a caixa de ressonância onde os dias nos ressoam. Os dias ressoam musicalmente. Os dias têm uma musicalidade. Ouvimos música. Somos música. Somos tocados pela música dos dias. Somos entre a música de partir corações e a música de embalar o mundo. No embalar do mundo somos levados na leva. De enxurrada. Somos levados na enxurrada. Sem que sequer mexamos os pés. O nosso movimento é o movimento dos muitos. Os muitos movimentam-se sem sair do lugar. Levados na leva. A atmosfera do ser levado na leva é a atmosfera da boa disposição. Levados na leva somos bem dispostos. Adquirimos a qualidade do ser bem disposto. A boa disposição inebria. É algo do qual se quer mais. Cada vez mais. Mais e sempre mais. Tornamo-nos adictos da boa disposição. O ser bem disposto implica estar com os outros. A boa disposição partilha-se. Propaga-se. A dado momento todos se riem. O momento em que todos se riem é o epicentro da comédia. Todos aguardam o aguardado momento. O momento em que todos se riem. O riso é uma expressão da musicalidade. Tocados no riso somos presentes na gargalhada. O riso é tanto melhor quanto é rido alto. Alto e bom som. O riso embala-nos. O riso embala-nos no plano atmosférico. Somos perdidos na musicalidade. Músicos. Fazemos música. A cada dia. Vibramos como as cordas de um piano. Tons maiores e tons menores. Escalas. Somos tocados. A disposição do indisposto é uma disposição solitária. O vivente é disposto na angústia. O estar estranho da angústia afasta-nos da multidão. Não acompanhamos o riso da multidão. O riso do angustiado é ao contrário do riso da multidão. O angustiado ri quando ninguém ri. Ri do que ninguém ri. O angustiado deixa o epicentro da comédia. Afastando-se, o angustiado não deixa de ter humor. Tem no entanto um humor mais refinado. O angustiado procura rir a coisa certa na hora certa. O angustiado procura chorar a coisa certa na hora certa. O seu riso e o seu choro, as suas emoções e humores são educadas para eclodir com a coisa certa, na hora certa. O angustiado não é o sem humor, pelo contrário, o angustiado é aquele onde mais vigora o humor. Contudo, o seu humor é um humor atmosférico. É um humor que tem dias. O angustiado é tocado pelos dias, e os dias não são sempre os mesmos dias. Ainda que em parte o sejam. A atmosfera dos dias é ambígua. Há dias bem dispostos e há dias mal-dispostos. O vivente é consoante os dias. Não que tanto se lhe dá como se lhe deu. Contudo, a sua caixa de ressonância é de tal modo sensível que amplifica a atmosfera onde está a viver. Estar mal disposto é dar o primeiro passo. O primeiro passo é um afastamento do rebuliço da boa disposição. É indispensável estar-se fora do rebuliço. Quanto mais fora se está do rebuliço mais perto se virá a estar da claridade. No rebuliço não existe claridade.  

O rir do vivente é um rir trágico. O rir do vivente é entre a comédia e a tragédia.  

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Do espaço, intensamente sorvi a tridimensionalidade. A audição, o olfacto, a visão, o paladar e o tacto. Do tempo só a morte me traz notícia. O destino. Cedo me trazendo o regresso aos primórdios da vida. A doença. Tudo se inicia numa espécie de inflamação da matéria. A doença. O inorgânico originando o orgânico. As estruturas moleculares. Surgindo. Da água, os corpos surgindo. Pela primeira vez. 
O início. 
Estamos no início. 
A água escorre, impregna a terra na vida. Nós estamos na terra. Somos entre a terra e os oceanos. Somos impregnados. Aproximamo-nos da hecatombe. Sem saber que nos espera. Somos no tempo. Entre o início e o fim. Somos entre o início e o fim. Somos intermédios. Como árvores tombando. O truque é aguentar. O truque é aguentar o embate. O mais possível. O tempo corre. Corremos contra o tempo. Nada temos a nosso favor. Somos inflamados na matéria. O espaço e o tempo. Ocupamos espaço e tempo. Somos ocupados. No espaço e no tempo. Fluímos. Entre os extremos. Do fim para o início. A morte regressa-nos. A morte une os extremos. O fim e o início. Em nós, o toque. O fim tocando o início. Em nós. Todas as coisas irrompendo. A doença. O regresso. A matéria. A doença. A matéria inflamada. A matéria inflamando-se. Buscando o regresso. O regresso branqueia-nos. No regresso. No regresso somos brancos. Somos brancos até à secura do sol. 
Fomos húmus. 
Fogo seremos. 
Hei-de arder-me até ser seco. Nada em mim medrará. Tão só a vã promessa. Não serei ninguém. Nada serei. Tão só o esforço de medir forças com o mundo. Fui treinado no esforço. Esforcei-me. Esforcei-me até à exaustação. Tornei-me exangue como as pedras. Seco. Tornei-me seco e pronto a arder. Arderei fundo. Meus olhos na brancura arderão. Na brancura das coisas. Irrompendo. Não apenas a cegueira, a inflamação da matéria. O vazio. Cegos e inflamados no vazio. Eis-nos. Eis-me. Cego e inflamado. Prostrado no lugar de minha morte. Minha morte aqui será. Neste quarto de hospital. Aqui. Aqui e agora. Tudo é aqui e agora. Espaço e tempo confluem, perfazem a unidade. A unidade espera-me. Serei uno. Serei uno para com os outros. Seremos unos uns para com os outros. Havemos de ser conflusos. Haveremos de confluir. Na conflusão seremos unos. Seremos indistintos. Sem resquícios de ganância. A matéria é vã. Somos corpos. Corpos liquefeitos na matéria. Somos água escorrendo. Somos gastos. Gastos e confusos. Confluímos no grande rio do esquecimento. Somos perto do Aqueronte. 
Preparei-me. 
Eduquei-me para a morte. 
Fui a morrer, a cada dia. No entanto, jamais estive preparado. Jamais estamos preparados para a morte. Há sempre esperança. Uma ténue esperança. Sempre houve esperança. No fundo esperamos sempre que tudo não passe de um sonho mau. Inflamados e confusos. Somos inflamados e confusos. 
Espero que tudo não passe de um sonho mau...

Dias. Anos. Décadas. 

Educando-me para a catástrofe. 


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Eis-me! Pobre de Deus. Transitando. Da merda à mesma merda! Transitando. Havia-me sido prevista a sublimação. E, no entanto, transito. Sou-me longe do espirito. Colecciono coisas. Colecciono coisas transcritas em palavras. Coleciono o degredo. Antes coleccionava dinheiro e com o dinheiro comprava-me mundo. Antes perdia-me no assombro do sol. Antes via as coisas claras. Antes via as coisas claras e vendo as coisas claras não pesava o peso do mundo. Fui cego de clareza e cego na clareza nunca me pesei. Antes ser cego que ser o peso do mundo pesado em meus ombros. Havia-me sido prevista a sublimação. Sentei-me anos defronte os livros. Fui-me os livros como se os livros me fossem. Sentado, esperei. Esperei o dom da escrita. Fui imune ao movimento. O mundo movia-se. Ao meu redor o mundo movia-se. Fui imune ao mundo e ao movimento do mundo. Tantas pernas fugindo-me. Entre meus dedos só a réstia dos dias. Era eu quem me sobrava. Fui falho do talento do triunfo. Resisti até à exaustão. Fui exausto. Fui exangue de tanto esperar. Da espera me resto. Pouca coisa. Nem uma palavra que o mundo toque. Nem uma palavra que o mundo mova. Eu que apenas quis um dom. O dom da palavra que o mundo movesse. Pouca coisa. Uma palavra apenas. Nem carros, nem casas. Resisti aos impulsos, às mulheres em catadupa. Fui focado. Sem distrações. Fui focado no foco. Jamais me irrompi. Nem um sorriso. Livrei-me ao sofrimento da paixão. Fui equanime. Fui a equanimidade. Sem pathos. Tentei o mundo sem a emoção do mundo. O mundo exterior era-me. Contudo, o mundo exterior era-me sem emoção. Apático. Ataráxico. Cinico. Fui autárquico. Sereno. Ausente da dor e da alegria. Neutro. Rechaçando as cores. Apenas claro e escuro. Sem mistura. Fui a experiência neutra das coisas, até ao terramoto. Até à terra tremendo a meus pés. Mesmo tremendo a terra, o mundo jamais se moveu. Nem um passo. Fui pródigo em palavras, mas as palavras jamais o mundo moveram. Nem um único balanço. Dispus-me, junto aos albergues dos leprosos. Fui exilado do mundo para curar as forças. Da paixão restou-me indiferença. Depois seria tarde. Depois seria tarde de mais. Uma educação na arte de morrer leva tempo. Começa e acaba no fim. Nem uma palavra. Nem uma palavra que o mundo toque. Nem uma palavra que o mundo mova. Somente dor. Transcrita. Havia-me sido prevista a sublimação. Nada me chegou. Dias infindos. Apenas. Apenas a cinza dos dias. Infindos. Como se me fumassem a toxicidade. Tornei-me tóxico. Espero seja isso um sinal. Espero ser sinalizado. Para que todos se afastem. O silêncio é o lugar do ouvir. Espero que a gente se afaste. Afastado ouvirei o silêncio do início. No início iniciarei a procura. De novo. De novo buscarei terras afastadas. A promessa da terra. A prometida promessa da terra arável junto ao rio. As águas irrigar-me-ão. Espero. Espero ser irrigado pelo passar das águas. A força das águas levar-me-á. Não necessitarei mover-me. Nem um passo. Nem um passo que seja. Espero.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        

sábado, 17 de setembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - II

II 
excerto da entrevista a Sebastien Void.

Rui Carvalho: a tua pertença ao espécimen obra inacabada faz então de ti um ser especial. Regra geral as pessoas são obras acabadas. As pessoas em geral parecem saber bem por onde ir e o que fazer. Como lidas com as pessoas em redor? Como lidas com os seres acabados?

Sebastien Void: regra geral as pessoas são preenchidas. As pessoas preenchem-se nos seus afazeres. As pessoas são socialmente adestradas para o exercício de funções. Somos socialmente incutidos numa série de apetrechos socio-educacionais que nos tornam seres acéfalos. Não somos educados no espirito critico. Menos ainda no sentido estético e no sentido ético. Bem pelo contrário, desde cedo somos incutidos no espirito de manada. Somos adestrados para ser os muitos, desde cedo. A muita quantidade é a qualidade primeira. Somos incutidos no espirito da muita quantidade. O quanto mais melhor é o nosso lema. Gostar muito é gostar com os muitos. Ver muito é ver com os muitos. Ouvir muito é ouvir com os muitos. Fazer muito é fazer com os muitos. Somos a comunidade dos muitos. Quantos mais melhor. No adestramento social as pessoas tornam-se preenchidas. Estão com os outros. Quanto mais não seja estão com os outros. É este estar com os outros, é este comungar com os outros uma realidade dada que preenche as pessoas. A funcionalidade é a argamassa que nos une. Somos funcionais. Ao sermos funcionais partilhamos uma determinada perspectiva do mundo. Vemos o mundo sob o prisma da funcionalidade. O mundo deve funcionar e nós somos aqueles que fazem com que o mundo funcione. O problema é que o mundo não funciona, pelo menos não funciona da maneira mais correcta. O mundo não funciona, mas as pessoas acham que o mundo funciona. As pessoas têm as suas vidas, fazem as suas vidas. As pessoas têm as suas vidas preenchidas. Desde que tenham um trabalho, uma casa, uma família, nada mais importa. As pessoas estão preenchidas nos constantes afazeres. Os afazeres das pessoas gravitam em torno do seu trabalho, da sua casa, da sua família. Qualquer empecilho é um problema a evitar. Mesmo que tropecem, as pessoas tropeçam em manada. O tropeçar em manada é uma espécie de tropeçar sem que realmente se tropece. O tropeço é dado como um caso de azar. Tropeçamos por azar. O ficar sem emprego, por exemplo, é apenas um tropeço no azar. O desempregado não vê o seu desemprego como uma disfuncionalidade social, outrossim vê o seu desemprego como um caso de azar. Se o mundo não funciona da maneira mais correcta o problema do seu não funcionamento não é nosso. O não funcionamento do mundo em determinadas circunstâncias é apenas mais um caso de azar. É porque fomos tolhidos no azar. Mas na verdade o não funcionamento do mundo deriva do facto de nos estarmos constantemente a atravessar no caminho uns dos outros. É o atravessamento que nos faz tropeçar. A determinada altura o espirito de manada irrompe no medo. No medo tropeçamos uns nos outros. No medo corremos cada um para seu lado. O nosso primeiro propósito é fugirmos ao medo. Fugimos em várias direcções. Cada um para seu lado. Por isso o mundo não funciona. Tropeçamos uns nos outros. No tropeço aquele que está no chão é passado por cima. O que cai é trucidado por todos os que fogem em várias direcções. É trucidado até fazer parte do chão. O que tropeça já não se levanta mais. Está no chão e aí irá ficar. O que tropeça é o falhado. As pessoas não querem olhar a falha. As pessoas almejam o sucesso, almejam tão freneticamente o sucesso que se recusam a olhar a falha. A falha é uma possibilidade que não se quer ver. Recusamos a falha, recusamos a falha e recusamos o falhado. Seguimos em frente, sempre em frente, sem olhar o chão repleto de seres caídos. O chão está repleto de seres caídos sob nossos pés. Nós nem sequer vemos. Não vemos onde pisamos. Pisamos seja o que for e seguimos em frente. O mandamento é seguir em frente, sempre em frente, rumo ao sucesso. O azar é o azar do outro, o que tropeçou e caiu. Apesar disso o mundo funciona, continua a funcionar, pelo menos para nós, que mantemos nossas vidas intactas.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Funâmbulos. No desequilíbrio nos balançámos. Funâmbulos. Íamos funâmbulos, junto à pressa de nos sermos. Apressados. Como vagas buscando terra firme. Entre o mar e a promessa da profundeza. Oceânica. A profundeza das vagas de onde viera-mos. Éramos bêbados de ser. Éramos bêbados no preciso lugar dos vinhos. Sulcávamos as vinhas, os campos vindimados no porvir. Íamos e vinha-mos, sem destino. Sem destino nos caíamos. Caíamos o arame onde passávamos os pés. De passagem. Éramos de passagem. Sem regressos. O regresso era uma metáfora. Sabíamos não haver regresso. O lugar de onde viemos é longínquo. Tão longínquo quanto a ira de Deus. Sobre nós caia a ira. A ira de não sermos o que poderíamos ter sido. Por culpa nossa. Por nossa culpa olhámos sem nos vermos. A paisagem. Olhámos a paisagem e na paisagem nos perdemos. Atmosférica. A paisagem redigindo-nos as vidas. O arame onde púnhamos os pés cravava-nos farpas. O sangue escorria na paisagem. Da paisagem para o cerne do ser. Como se nossos olhos fossem inscritos nas escrituras. Estar em Jerusalem era ser Jerusalem. Estar no destino era ser como o destino. Como bombas. Como bombas cravadas nos dias, as horas detonavam-nos. Detonados perseguíamos o sentido. Houvesse sentido e teríamos sentido? Porque não sentimos? Porque não sentimos o sentido? Nosso sentido era percorrer o redor. Andar em redor. Sem visar o centro. Apressados. Tanta a pressa do regresso. Como se o regresso fosse uma possibilidade. O regresso é impossível. O regresso é fora das possibilidades. Andemos o que tenhamos a andar. Percorramos o que tivermos a percorrer. Até à impossibilidade do regresso. O regresso é entre a metáfora e o milagre. O regresso é difuso. O regresso difunde-se. Escorre como areia entre nossas mãos. O regresso é na fé. Veiculado nas metáforas. As metáforas veiculam o impossibilidade do regresso. Indizível. O regresso é indizível. O regresso abarca todo o espectro da solidão. A solidão seria termos ficado. A solidão seria termos sido juntos na procura. Dois seres amando-se até à impossibilidade. Todo o espectro da solidão. A solidão não é sermos um. A solidão é sermos dois. A solidão é sermos dois seres amando-se. A solidão é sermos dois seres amando-se até à impossibilidade. Encontros e desencontros. A solidão é termo-nos encontrado para encontrados nos perdermos. Perdidos. Perdidos nos esquecemos do que fomos. Fomos supérfluos até ao visar da angústia. A perda. Na perda a angústia escorrendo. A angústia degustada em nossos lábios.  O encontro e o desencontro.

O encontro. 


O desencontro. 

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - I

Rui Carvalho: quem é Sebastien Void?

Sebastien Void: acho que basicamente sou alguém a quem falta o dom da permanência. Nunca soube ficar. Ficar foi-me uma tarefa quase sempre impossível. Durante anos. Não refiro apenas o ficar num lugar. Refiro essencialmente o permanecer numa ideia. Percorri várias cidades, vários sítios dentro das cidades, vários lugares dentro do mundo.  Ao percorrer os vários lugares fui percorrido pelas várias ideias. Sempre fui assolado pela pressa. A pressa de partir. Procurar lugares. Depois de descobrir os lugares entrava em tensão com os lugares onde estava. O estar em tensão levava-me a partir novamente para novamente tentar encontrar outros novos lugares. Fui levado numa espécie de ânsia. Acho que sempre fui ansioso. Desde que me lembro. Construo as coisas em expectativa. Antes de partir construo idealmente as paisagens que encontrarei, ou melhor, anseio pelas paisagens que desejo encontrar. Aquilo que encontro é sempre menos que aquilo que preciso. As paisagens são-me sempre desfocadas. Há um desfocamento. Há um desfocamento entre o que encontro e o que anseio encontrar. Sou disfuncional. Sou tolhido na disfuncionalidade. Sou o hiato entre a realidade que projecto e a realidade com que me deparo. Acho que sim, devo ser esse hiato entre o que procuro e o que encontro. Exerço-me no hiato. Sou alguém que se exerce no hiato. O hiato é o caminho onde me faço. No hiato faço coisas que deixo sempre inacabadas. Acho que no final de tudo acabarei por ser a obra inacabada de Sebastien Void. Acho que todos nós acabamos por ser um pouco o que fazemos. Tornamo-nos o que fazemos. Por exemplo, um juiz, acaba por ser a lei. Um juiz que viva a sua função de um modo exacerbado acaba por tornar-se uma pessoa inamovível, uma pessoa hirta e fria, tal qual a lei que executa. Ou um advogado, um advogado acaba por tornar-se um ser de mentira. O advogado é um sofista. O advogado é o tipo capaz de engendrar a defesa do mais vil criminoso. Esse é o seu trabalho. O trabalho do advogado, na maioria das vezes é o exercício da mentira. O advogado defende os interesses dos seus representados. Ao defender a mentira o advogado torna-se a mentira. Acho que também eu sou o que faço. Sou as minhas obras inacabadas. Sou uma obra inacabada. Sou o caminho entre os lugares. Sou de lugar para lugar. Sou de ideia para ideia. Tornei-me um ser fugaz. Sou a fugacidade. Desapareço facilmente. Faço-me desaparecer. Tenho o dom do desaparecimento. Talvez seja isso que caracteriza o artista enquanto tal. Fazer-se desaparecer para que a obra possa emergir. O problema é que a minha obra não emerge. Eu faço-me desaparecer, mas a minha obra não emerge. Centenas de músicas inacabadas. Dezenas de livros inacabados. Quase uma dezena de filmes por acabar. Telas quase acabas. Muitas telas quase acabadas. É essa a minha vida. A minha vida está nas obras por acabar. Sou uma obra por acabar. Acho que adquiri a forma de uma obra por acabar. Sou o espécimen obra por acabar

Rui Carvalho, s. d.








sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Percorrer a mortalidade é nunca ter visto o céu. Nunca ter olhado para cima. Nem para cima nem para baixo. O céu só se vê por cima das nuvens. Para lá das nuvens não há em cima nem em baixo. Já não são dispendiosas as viagens de avião. Contudo, sinto medo de voar. Talvez o céu seja superior à mentira. Talvez. Talvez queiramos saber coisas que não nos é dado saber. A curiosidade humana é uma coisa lixada. Quando criança quis saber se meus pais durariam as centenas de anos bíblicos. Ninguém me soube responder. Essas coisas são coisas de fé. Diziam-me. Também minha filha me pergunta agora muitas coisas de fé. Se um dia morreremos. Se um dia deixaremos de ter pais. Toco-lhe a mão ao de leve. Tento levá-la a acreditar no espirito. Que o espirito existe. Quando contemplamos uma obra de arte. Quando ouvimos música. Quando lemos um livro ou um poema. Há algo que se sente. Esse sentir perdura pelos anos, pelos séculos, pelos milénios. Sócrates chegou-nos. Pega-nos pela mão. Basta que nos saibamos também estender a mão. Estender a mão não é um gesto fácil. É mais fácil julgar que tudo sabemos. Que nascemos cheios de conhecimento. Somos ufanos. Há tanta gente que chega a velho sem nunca ter lido um livro. Antes pouco havia a fazer. Havia tanta gente analfabeta. Agora deixou de haver desculpas. As pessoas tornam-se aquilo que querem ser. Digo-lhe que podemos ter sentido. Podemos fazer sentido. Podemos agarrar o que está lá atrás e trazê-lo um pouco mais à frente. Elos de transmissão. Acho que podemos ser elos de transmissão. Pegando o espirito com uma mão para depois o transmitimos com a outra.
Não lhe digo o que agora sei. Que agora sei que nada dura. Muito menos a paixão. A paixão dura a eternidade de um fósforo. Podemos acender muitos. A minha filha é tão inteligente. Só espero que lhe leve muito tempo descobrir como funcionam as coisas. Que a atmosfera gastar-se-á. Entre matriculas de carros. Que seremos golpeados até nada sabermos do que nos foi acontecendo. Diria que nada sabemos. Nada saberemos. Nem onde estamos nem onde fomos. Meros fósforos ardendo. Talvez haja um Deus que nos arde. Talvez. Talvez sejamos uma mera brincadeira. Deuses ardendo-nos até à chacina. Seremos ardidos como fósforos. Essa é a magia. O arder da chama. Somos em chamas. A arder. A despropósito. Tanta chama ardendo. Até que nada haja. Nem um rio. Nem um rio que seja. Como se os mares não nos chamassem. Como se não fossemos regressados do mar.    


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Submarino. Reflexo como sangue. Antes da consanguineídade. Sou submersível. Não interessa onde sou. Não interessa onde fui. Sou impossível. Na pele recalcada. Sou a recalcada pele, ainda antes do poder ser. Tubarões e baleias. Animais de grande porte. Não aqueles que se rendem. Moby Dick. Onde te celebro? Deitando ouro, rasgando ouro. O enigmático dom da deriva. Moby Dick, a baleia enfurecida. Pele contra pele. A premissa do silêncio. Impermissivos como peixes. Avaros. Avaros, como cisnes grasnando. Pássaros de grande porte. Abre tuas asas Moby Dick. Eu te grasnarei. Até aos céus. Serei imperecível. Deus rasgando a metamorfose das coisas. Em silêncio. Incêndios indevidos. Coisas indevidas. Nada é devido a não ser o não poder ser. O óleo das baleias. As candeias que nos erguem. Candeias erguidas antes ainda do petróleo. Petrolífero. O néctar da indisposição. Ariadne. Onde estás? Onde estás faminta? Onde me és faminta? Pele contra pele? Eis-me, grasnando. Ariadne: escuta minha voz, Ariadne? Onde és? Ariadne, onde estás? Onde vislumbro tua nudez, acesa no óleo das baleias? No óleo das baleias fui o esforço de te ter. Agora. Agora só tu me faltas. Estivemos contra-natura. Sou contra a natureza das coisas. Infame. Infame e prolixo, como os detritos. Irregenerável. Sou as bodas entre portas. Sangue contra sangue. Até à desigualdade dos desígnios. Um caminho aberto até à Patagónia. Caminhos rarefeitos. Sem partilha de oxigênio. Montanha acima. Perto dos duendes. Perto da presença das coisas fartas. A atmosfera é farta de imprecisões. Sigo a impossibilidade. Sigo as cores do desalento. Em alto mar busco as altas montanhas. A sobrevivência. A impossível sobrevivência de meu desígnio. Cores fartas. Um mundo farto de cores. Até ao infra-vermelho. Um talento de coisas raras. Coisas raras e contrafeitas. Impossíveis. As coisas em metamorfose. Perto do arco íris. Perto. O sinal da aliança. Quem nos diz como ser? Somos perto da impossibilidade. Perto da impossibilidade, mas não impossíveis. Não somos impossíveis. Somos a magia do estar a ser. Somos mágicos como as fragas provindo. Somos o alto mar das coisas. Por baixo, as ondas respiramos. Somos a respirar. Por baixo do farto desígnio. Respiramos como peixes. Assombrados. Somos assombrados pelo medo de nos sermos. Entre coisas impossíveis. Entre beijos reerguidos na fala de nossa infância. Entre coisas adjacentes e supérfluas. Raro como o Sol. Como planeta girando entre a medula óssea. Sou intrínseco às coisas. Sou o peso que se pesa. Vasto. Vasto como as planícies desejando. Uma estrada aberta no impossível, sem curvas. Sempre em frente. Vislumbrando o ponto de fuga. Em infinito me sou. Rasgando estradas sem saber onde. Sempre em frente é a estrada, rectilínea e imprecisa. A estrada. Em sinal de desejo. Imprópria. Extravagante. Extravagante até à lua das coisas impraticáveis. Dedos soltos na planície de tuas pernas. Em húmus, o desejo. A humidade das coisas impenetráveis. Até à penetração. 

A saudade. A saudade é o lugar onde se aguarda o poder ser. A saudade sinaliza-nos uma possibilidade em aberto. O poder ser dá-se na forma do vir a ser do quase dado. Algo que esteve prestes a acontecer mas ainda não aconteceu. Por um triz. O quase dado foi o ser por um triz. Por um triz. A distância foi milimétrica. A distância conta-se em décimas, décimas de segundo. O ser por décimas de segundo transforma o tempo num lugar de remorso. De lá para cá. De lá para cá, somos assombrados pelo remorso. O remorso prescreve-nos a saudade. Porque não nos deixámos acontecer? Porque nos deixámos tocar pela norma? Porque permitimos que a norma nos tolhesse o horizonte de possibilidades? Na norma as possibilidades são as possibilidades permitidas pela norma. A norma dirige-nos o caminho. Na norma somos encaminhados. A norma cerceia a paixão. O viver na norma é o viver desapaixonado. Vivemos segundo as regras e as regras são sombrias. Na norma vivemos segundo as regras dadas. As regras são dadas no papel. O legislador legisla as regras que nos regem. Ainda que não escritas. Ainda que não escritas, as regras são dadas no “papel”. Ainda que não legisladas as regras são aceites como lugar comum. Na norma somos o lugar comum. Vivemos na comunidade do lugar comum. No lugar comum somos despejados da vida. No lugar comum somos o que é suposto virmos a ser. Figurantes. É suposto que sejamos figurantes. Figurantes na farsa da sociabilidade. A sociabilidade engendra-nos como autómatos. Somos autómatos no sistema. No sistema somos funções. Cumprimos uma funcionalidade. Cumprimos a nossa funcionalidade. Não somos nem mais nem menos que todos os outros. Somos os outros. Na sociabilidade somos os outros de nós mesmos. O nosso papel é o papel do figurante. Figurando exercemo-nos na ambiguidade. Não desempenhamos qualquer papel na acção. Como figurantes figuramos. Somos natureza morta na paisagem. Não acrescentamos nada à cena. Estamos lá. O nosso papel é estarmos lá. Estarmos lá, no local onde querem que estejamos. Estando lá cumprimos a nossa função. Somos funcionais. Sendo funcionais somos tudo o que havemos a ser. A funcionalidade é sem desenlace. Na funcionalidade não há acção. Na funcionalidade há programação. Na funcionalidade somos programados. Somos programados como autómatos. Exercemo-nos na automaticidade. Movemo-nos de cá para lá e de lá para cá sem que verdadeiramente nos movamos. Movemo-nos sem deixarmos o lugar onde estamos. O lugar onde estamos é o lugar onde sempre estivemos. O nosso lugar é o lugar do figurante. Nem uma luz acessa. Movemo-nos sem que uma única luz de acenda. Na figuração somos sombrios. Não estamos sequer em segundo plano. Não somos sequer actores secundários. Na figuração somos natureza morta na paisagem. A encenação exige-nos a localização na paisagem. Como estacas. Somos estacados nos dias. Estacados, os dias são-nos estanques. Os dias correm sem alteração. Dia e noite, noite e dia. Os dias rotinam-nos. Somos a rotina dos dias. Somos estanques como os dias. Somos os dias a ser, dia e noite e noite e dia. Sem alteração. O mesmo. Sempre o mesmo. Na rotina somos sempre o mesmo da rotina. Sem tirar nem pôr. Nada se acrescenta. Nada se subtrai. A realidade é estanque, a realidade é estancada na rotina. Porque nos deixámos estancar? Porque nos deixámos estancar na rotina? Porque não fomos nós? Porque não fomos o nós que devíamos ter sido? Porque nos limitámos a ser o nós sem enredo? Porque nos deixámos ser o nós da figuração? Porque não tomámos de assalto o palco da vida? Porque não vivemos? Porque nos recusámos a viver? Porque não fomos plenos? Plenos voaríamos as encostas. Plenos planaríamos os rios. Planaríamos os rios em direcção ao ma