III
A procura. Aconteceu-me a procura. A procura de transparência. Como se a transparência fosse possível. Como se possível fosse vislumbrar transparência na opacidade. A opacidade. Como procurar transparência na opacidade? O mundo. O mundo é opaco. O mundo não transparece. A procura de transparência onde ela não existe conduz à dor. E a dor é sentida. A dor é vivida como naufrágio. Náufrago. Tornei-me náufrago. No início de tudo está o naufrágio. No naufrágio comecei a existir. Antes. Antes do amor há o naufrágio. Antes. Antes ainda de me ter tornado náufrago. Antes ainda de me ter tornado náufrago de ti. Antes. Antes ainda de me ter tornado náufrago do meu amor por ti.
Só o amor. Só o amor transparece, meu amor. No amor procuro âncoras. Náufrago. Náufrago procuro âncoras. Barcos onde me possa ancorar. Ainda que os barcos me conduzam a deriva. Ainda que os barcos só me conduzam a deriva. Em deriva me ancoro. Náufrago. Náufrago procuro âncoras. Náufrago procuro que me ancores, âncora que me és. Só o amor transparece. Só o amor que és me transparece. Náufrago. Sustenho a beleza em meus olhos. Tua beleza em meus olhos. Sustida. Tua beleza sustida em meus olhos. Meus olhos naufragando o poema que me és. Meus olhos de amante amando. Somente os olhos dos amantes podem suster a pouca beleza do mundo. Somente os olhos dos amantes se adequam ao vislumbre. Somente os olhos dos amantes estão aptos a vislumbrar no mundo os intermitentes rasgos. Da beleza. Da beleza, os intermitentes rasgos. A transparência. A transparência da beleza. A beleza transparece. Tua beleza transparece. Meus olhos. Meus pobres olhos de amante amando sustêm a tua beleza. Toda a tua beleza em meus olhos.
Minhas unhas, meus dedos, minhas mãos, minhas mãos de amante amando correm atrás de meus braços. Meus braços. Meus braços de amante tentam abraçar o mundo, mas o mundo jamais está lá para ser abraçado. Tu. Tu não estás no mundo para ser abraçada. Minhas unhas, meus dedos. Minhas unhas, meus dedos, em minhas mãos de amante. Minha unhas e dedos em mãos de amante sempre chegam tarde ao encontro de meus braços. Minhas unhas e dedos em mãos de amante amando chegam sempre tarde e, chegando sempre tarde, jamais conseguem o abraço do mundo. Nem o mundo está no mundo nem meus braços estão onde está meu corpo. Meus braços. Meus braços de amante estão onde estão meus olhos. Meus olhos. Meus olhos de amante estão longe. Os olhos dos amantes são sempre longe. Os olhos dos amantes são longínquos. Longinquamente vislumbram as inauditas galáxias onde as estrelas brilham. Meus olhos de amante vislumbram as galáxias onde me brilhas meu amor, desde sempre. Correndo o redor de minhas unhas, de meus dedos, de minhas mãos de amante amando, há a tua beleza. Os amantes correm, e no decurso de sua corrida em redor do mundo se transcreve a poesia. A correria. Tudo nos amantes é correria. Ainda que não pareça. Ainda que assim não pareça. Os corpos dos amantes não correm. Transcorrem. O meu corpo transcorre. Os corpos dos amantes transcorrem no tempo. O que em mim corre são meus olhos. Meus olhos devolutos. Meus olhos devolutos tentando a caricia do mundo. Acariciando a opacidade do mundo os amantes amando vislumbram o outro de si. A alteridade. O outro. Os amantes são sempre um outro que ama. Um outro que constantemente se embate de encontro ao muro da incerteza. A inconsistência. O mundo é inconsistente. Inconstante. O ricochete da incerteza conduz os amantes à alteridade. O outro de si. Os amantes são sempre o outro de si. Fingidores. Fingindo ser o que não são. Fingindo ser o que não sou. Fingindo estar onde não estou. Eu, que nunca estou onde estou. Que nem sequer estou onde não estou. Quem sou? Onde estou?
Os amantes. Os amantes acordam a cada segundo. O despertar dos amantes dá-se a cada segundo. Desperto a cada segundo, e a cada novo despertar procuro um novo sentido. Um novo sentido que possa finalmente devolver-me o sentido. Todo um passado, longínquo. O passado. Vislumbro todo o passado à minha frente, nas galáxias, nas galáxias onde as estrelas brilham. Nas galáxias onde me brilhas. Desde sempre. Para sempre. As estrelas brilham desde sempre. Não o mundo. O mundo não brilha. O mundo é opaco. Obscuro. Os amantes degladiam-se com a opacidade. A opacidade do mundo. Desde sempre. Os amantes degladiam-se com a dor. A obscuridade do mundo é a dor dos amantes. Os livros. Os livros escrevem-se na dor. Os livros são a representação dos desencontros. Os livros representam os desencontros. A escrita. A escrita é o desencontro. A escrita deriva do desencontro dos amantes com o mundo. Os amantes. Os amantes são o desencontro. Desencontrados, os amantes navegam os naufrágios. À tona de água. À tona de água procuro o acerto da respiração. A respiração poética é-me o recomeço do mundo, meu amor. Tu me és a respiração. Tu me és a poesia, meu amor. Tu me és a respiração poética. A eterna respiração poética vibrando em tua luz. Para sempre. Desde sempre.
Álvaro Cunhal. s. d.