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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Love songs to no one else - III

III

A procura. Aconteceu-me a procura. A procura de transparência. Como se a transparência fosse possível. Como se possível fosse vislumbrar transparência na opacidade. A opacidade. Como procurar transparência na opacidade? O mundo. O mundo é opaco. O mundo não transparece. A procura de transparência onde ela não existe conduz à dor. E a dor é sentida. A dor é vivida como naufrágio. Náufrago. Tornei-me náufrago. No início de tudo está o naufrágio. No naufrágio comecei a existir. Antes. Antes do amor há o naufrágio. Antes. Antes ainda de me ter tornado náufrago. Antes ainda de me ter tornado náufrago de ti. Antes. Antes ainda de me ter tornado náufrago do meu amor por ti. 
Só o amor. Só o amor transparece, meu amor. No amor procuro âncoras. Náufrago. Náufrago procuro âncoras. Barcos onde me possa ancorar. Ainda que os barcos me conduzam a deriva. Ainda que os barcos só me conduzam a deriva. Em deriva me ancoro. Náufrago. Náufrago procuro âncoras. Náufrago procuro que me ancores, âncora que me és. Só o amor transparece. Só o amor que és me transparece. Náufrago. Sustenho a beleza em meus olhos. Tua beleza em meus olhos. Sustida. Tua beleza sustida em meus olhos. Meus olhos naufragando o poema que me és. Meus olhos de amante amando. Somente os olhos dos amantes podem suster a pouca beleza do mundo. Somente os olhos dos amantes se adequam ao vislumbre. Somente os olhos dos amantes estão aptos a vislumbrar no mundo os intermitentes rasgos. Da beleza. Da beleza, os intermitentes rasgos. A transparência. A transparência da beleza. A beleza transparece. Tua beleza transparece. Meus olhos. Meus pobres olhos de amante amando sustêm a tua beleza. Toda a tua beleza em meus olhos. 
Minhas unhas, meus dedos, minhas mãos, minhas mãos de amante amando correm atrás de meus braços. Meus braços. Meus braços de amante tentam abraçar o mundo, mas o mundo jamais está lá para ser abraçado. Tu. Tu não estás no mundo para ser abraçada. Minhas unhas, meus dedos. Minhas unhas, meus dedos, em minhas mãos de amante. Minha unhas e dedos em mãos de amante sempre chegam tarde ao encontro de meus braços. Minhas unhas e dedos em mãos de amante  amando chegam sempre tarde e, chegando sempre tarde, jamais conseguem o abraço do mundo. Nem o mundo está no mundo nem meus braços estão onde está meu corpo. Meus braços. Meus braços de amante estão onde estão meus olhos. Meus olhos. Meus olhos de amante estão longe. Os olhos dos amantes são sempre longe. Os olhos dos amantes são longínquos. Longinquamente vislumbram as inauditas galáxias onde as estrelas brilham. Meus olhos de amante vislumbram as galáxias onde me brilhas meu amor, desde sempre. Correndo o redor de minhas unhas, de meus dedos, de minhas mãos de amante amando, há a tua beleza. Os amantes correm, e no decurso de sua corrida em redor do mundo se transcreve a poesia. A correria. Tudo nos amantes é correria. Ainda que não pareça. Ainda que assim não pareça. Os corpos dos amantes não correm. Transcorrem. O meu corpo transcorre. Os corpos dos amantes transcorrem no tempo. O que em mim corre são meus olhos. Meus olhos devolutos. Meus olhos devolutos tentando a caricia do mundo. Acariciando a opacidade do mundo os amantes amando vislumbram o outro de si. A alteridade. O outro. Os amantes são sempre um outro que ama. Um outro que constantemente se embate de encontro ao muro da incerteza. A inconsistência. O mundo é inconsistente. Inconstante. O ricochete da incerteza conduz os amantes à alteridade. O outro de si. Os amantes são sempre o outro de si. Fingidores. Fingindo ser o que não são. Fingindo ser o que não sou. Fingindo estar onde não estou. Eu, que nunca estou onde estou. Que nem sequer estou onde não estou. Quem sou? Onde estou? 

Os amantes. Os amantes acordam a cada segundo. O despertar dos amantes dá-se a cada segundo. Desperto a cada segundo, e a cada novo despertar procuro um novo sentido. Um novo sentido que possa finalmente devolver-me o sentido. Todo um passado, longínquo. O passado. Vislumbro todo o passado à minha frente, nas galáxias, nas galáxias onde as estrelas brilham. Nas galáxias onde me brilhas. Desde sempre. Para sempre. As estrelas brilham desde sempre. Não o mundo. O mundo não brilha. O mundo é opaco. Obscuro. Os amantes degladiam-se com a opacidade. A opacidade do mundo. Desde sempre. Os amantes degladiam-se com a dor. A obscuridade do mundo é a dor dos amantes. Os livros. Os livros escrevem-se na dor. Os livros são a representação dos desencontros. Os livros representam os desencontros. A escrita. A escrita é o desencontro. A escrita deriva do desencontro dos amantes com o mundo. Os amantes. Os amantes são o desencontro. Desencontrados, os amantes navegam os naufrágios. À tona de água. À tona de água procuro o acerto da respiração. A respiração poética é-me o recomeço do mundo, meu amor. Tu me és a respiração. Tu me és a poesia, meu amor. Tu me és a respiração poética. A eterna respiração poética vibrando em tua luz. Para sempre. Desde sempre.

Álvaro Cunhal. s. d.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Sobre toda a escuridão - VII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



 Que as divindades nos re-enviem a destruição, o mito do dilúvio; o mais humano desejo - a vida.
Que chova a potes, direi:
necessitaríamos esticar as cordas vocais até ao rebentamento dos tímpanos. Talvez desse modo o humano pudesse deixar de ser “isto”, esta coisa chafurdando a inocuidade. Seria necessário sermos adquiridos na arte de nos fazer doer a voz. Que na voz doída soubéssemos re-interpretar-nos nos sonhos. 
Alguém teve o talento de construir a arca onde vagarmos os oceanos. Sim, sempre houve  quem tivesse o dom de predominar na beleza. 
A arte. 
A arte aqui está, basta deixarmos que nos perpasse. 
Somos contudo falhos de sabedoria. Falta sabermo-nos adquirir no dom do embarque, sabermos que sem embarcarmos jamais desembarcaremos, jamais deixaremos de ser a vil mesquinhez. 
Entretanto.
Nada terá valido a pena quando as águas baixarem se quando as águas baixarem o mundo voltar a ser o mesmo, se continuarem a existir arco-íris mas nenhuma promessa que grasse. 

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

domingo, 27 de agosto de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - VII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Eis-nos a fragilidade dos pássaros, o instante em que a cera das asas nos anseia os raios solares. Tocado na urgência de voar sobre Creta, raso agora a impertinência. Eu, o Homem habitado pela morte, pela estranha necessidade de sobrevoar os labirintos. 
Após a prisão de Dédalo temo a minha continuidade, o aprisionamento no solo. Por isso unto-me de cera nas penas de gaivota e treino a aproximação ao Sol.
São estas as possibilidades: 
- voando muito baixo serei refém da humidade;
- voando demasiado alto derreterei junto às chamas. 
Não há nada de intermédio. Pelo menos não há nada de intermédio a que se possa chamar vida. 
Entretanto, poderia cegar os olhos e seguir a indiferença. Vagar-me na penumbra das coisas úteis e aí deixar-me aprisionado. 
Logo eu não me saber ser os outros e ao contrário dos outros não saber viver a iniquidade.
É isto:
serei tolhido pelos labirintos que criei enquanto o mar Egeu treina o curso de seu riso. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 26 de agosto de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXXIX

XXXIX
Rui Carvalho: Identificas a imposição do não valor como valor e a imposição do medo como fonte de governação como duas condições essenciais para o exercício da perfídia. Podes explicar-nos melhor com ocorre ou como ocorreu o fenómeno da imposição do valor como não valor?

Void: A quantidade. A quantidade é-nos imposta como valor. A imposição da quantidade como valor está directamente correlacionada, por um lado com o advento da democratização das sociedades e, por outro lado, com o desenvolvimento da ciência moderna. 
Somos completamente dominados, manietados pelo paradigma quantitativo. O quanto é o valor. O quanto torna-se valor. O mais do quanto. Quanto mais melhor. A quantidade. A magia do mundo está na quantidade. O mais e o menos. O mais é sempre mais que o menos. O mais gostado. O mais valorizado. O mais caro. O bom. O bom identificado como mais. O número. O sistema numérico tornou-se uma arma de poder.
O advento democrático trouxe-nos o desvelamento do muito como valor. Nas sociedades aristocráticas imperava o despotismo, e no âmbito do despotismo a quantidade não era sequer tida em conta enquanto fonte de poder. O poder era o poder do mais forte, do mais capaz, do mais rico, do mais pérfido. As tabelas axiológicas deste tipo de sociedades fundavam-se em valores de índole não quantitativo. A quantidade nada tinha que ver com os fenómenos de poder. É na passagem deste tipo de sociedades para as sociedade democráticas ocidentalizadas que se verifica o dealbar do quantitativo como valor, do mais e do menos enquanto formas de medida no acesso ao poder. Nas sociedades ocidentalizadas o mais e o muito são o valor por excelência. Ora, o mais e o muito das quantidades são algo absolutamente subjectivo. Imagine-se que os muitos são absolutamente estultos. Se os muitos são absolutamente estultos, a estultícia passa a ser discernida, passa a ser reconhecida como algo de bom. Neste tipo de sociedades o muito é desde logo identificado com o bom. O que é muito é o que é muito bom.
Quanto à importância da ciência moderna como fonte de quantificação e de imposição do quantitativo como valor, a mesma tem sobretudo a ver com a identificação da natureza como um conjunto de átomos e vazio. Com o advento da ciência moderna, a natureza é identificada como um conjunto de átomos e vazio. Ora, uma realidade composta de átomos e vazio é uma realidade quatificável. Assim sendo, tudo no mundo se resumirá a quantidades. Após a determinação das quantidades estamos habilitados a ler a natureza. Com a possibilidade de leitura da natureza vem colada a possibilidade de domínio da natureza. A natureza é desde logo identificada enquanto entidade quantitativa. Enquanto realidade determinada e determinável. Ora, uma entidade determinada e determinável é desde logo uma entidade previsível. Assim sendo, os fenómenos da natureza são previsíveis, são predicáveis. Sendo os fenómenos da natureza predicáveis torna-se possível prever a ocorrência dos vários acontecimentos. Tudo se resumirá então a premissas e conclusões. A natureza e o mundo são realidades conclusivas. Tudo que necessitamos são unidades de medida. Sejam-nos dadas unidades de medida e a realidade ser-nos-á descrita ou explicada. Meios de cálculo. Só necessitamos de meios de cálculo. A realidade natural é um fenómeno instrumentalizável. Usando a técnica adequada é-nos possível dominar a natureza. O domínio técnico, a técnica torna-se predominante. O domínio das várias técnicas tornam legíveis os vários domínios da natureza. Física. Química. Biologia. Matemática. Estatística. As ciências da natureza. O número. Os bits. A informática. Zeros e uns. O predomínio das quantidades, o império do quantitativo.

Rui Carvalho, s. d.

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Breve curso de introdução à economia Grega - VI

Afrodite

Quero-me raio rasgando-te as vestes 
até ser só teu assombro, 
assombrosa mulher que desejo 
até ti os milénios rasgarei, Afrodite, minha doce Afrodite
rasgarei milénios até que voltes a ser quem sempre me foste
até ti me regrido, minha Deusa
até ti me regrido o asfalto colhendo-me o desastre, 
a intempérie até ao instante milagre.
Não quero futuro, 
sombras que me desenhem lugares por haver
não quero habitar os longos planaltos onde nada me espera.
Percorrerei precipícios, 
terras e eras longínquas onde me desprendo e me despenho
na descida meus joelhos rasgarei 
rasgarei meu corpo até à suplantação do Aqueronte,
suplantarei o infernal rio até de novo me chegar a ti.
O rasganço rasgando séculos, 
milénios 
milénios rasgarei 
até que de novo minha mulher me sejas, Afrodite, minha doce Afrodite!

                         
             Rui Carvalho, s. d.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Sobre toda a escuridão - VI - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



O cair da noite revela-nos uma proposição fundamental: para que as luzes brilhem é necessário que o escuro se faça. Além do mais, as bermas da estrada são repletas de luzes. Não, não há como transpor a matéria, a espessura do mundo. Outra coisa que não seja o sofrimento da inadequação.
Existem cinco caminhos possíveis: seguir em frente, voltar atrás, tombar as bermas ou restar no mesmo sítio.  
Resta-me permanecer sentado, com os livros a arder-me nos olhos. Sentir que - tudo se move, que o espirito vaga sem peso. 
O trânsito flui, como um rio correndo. Se o seguirmos com o olhar vêmo-lo tombar no horizonte. 

Seja como for: o futuro não existe, nada que não seja esta intensa prontidão para partir. 

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Love songs to no one else - XX

XX

Não aceitar esmolas dos pobres. Menos ainda aceitar esmolas dos ricos. Não aceitar esmolas, de todo. Não ter dinheiro, sequer para comprar de gás uma simples bilha. De todo. Esperar o arrefecimento do corpo para que o corpo se adeque às circunstâncias. Esperar o pior. Esperar o pior para que o melhor sobrevenha.  
Não ter dinheiro, de todo. Não ter dinheiro sequer para a morte que haverá estar a vir. 
Tão poucos são os que sabem. Tão poucos são os que sabem o que é ter inciso no cérebro um ferro brasa. As Musas. Sim, as Musas são-nos tão perto da loucura. Como ser premiado de um desígnio contrafeito? 
Não ter lugar entre os sãos. Não ter lugar entre os loucos. Não ter lugar, de todo. 
Ser o lugar das sombras. Esvair-se, entre o sangue escorrendo. Por fora, para fora de uma memória que se esvai. O esforço da perseverança. Perdurando, inscrito em palavras. 
Transmitir o que há a transmitir, a quem é devido transmiti-lo. O espírito roda, em círculos. Ser o esforço circular do espírito. 
Não aceitar esmolas dos pobres. Menos ainda aceitar esmolas dos ricos. Não aceitar esmolas, de todo. Não ter dinheiro para riscar o fogo acesso no gás que se não tem. Sequer para fazer fluir a respiração inalada no mais feroz veneno. 
Tudo resta. Tudo resta, menos a beleza. O fugaz olhar da mulher amada, o primeiro sorriso no amor de um primeiro filho. As Musas. Tua voz, Musa minha. Tu, que de amor me enlouqueces. Eu, que em ânsia te aguardo. O pingar das migalhas em ti, sorvidas como âmbar de ópio. 
Cinco segundos. Cinco segundos, parados na eternidade. Aguardando a implosão dos corações ardendo, tão perto do resvalar na loucura. 
Soubesses quanto tua pele brilha meus cegos olhos, Amor. A brevidade do tempo inscrita no pouco que de ti tenho. 
Não aceitar esmolas dos pobres. Menos ainda aceitar esmolas dos ricos. Não aceitar esmolas, de todo. 
Nada. 

Nada menos que o céu, as sôfregas migalhas que de ti me caiem, Amor meu.

Álvaro Cunhal, s. d.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Permanecer sentado, com as letras a arder-me nos olhos, adequando a visão ao brilho escuro do mundo. 

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 20 de agosto de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - VI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Olho o sussurro do mundo, o desabrochar das flores eternizando a beleza. 
Correrei veloz por dentro do vento até ao odor da polinização. Nada pronunciarei. Minha voz será contida na presença de teu cheiro. Não pronunciarei teu nome. Nada pronunciarei para que não te desveles, para que não te percas na volatilidade das coisas. 
Entretanto.
Olho o sussurro do mundo, o desabrochar das flores eternizando a beleza. 
Breves segundos antes da queda seremos perto da esfera celeste, toda a música tocada nos orgasmos dos anjos. Nada impedirá a propagação dos frutos, a disseminação das sementes caindo no solo, criando a estrutura do recomeço. 
Em teu corpo atingirei os estames onde me aguardas a procura do pólen, o vento correndo todas as direcções. No corrido vento serei a disseminação dos gametas, do micrósporo ao megásporo. 
Cumpriremos as leis da atracção. 
Entretanto.

Olho o sussurro do mundo, o desabrochar das flores eternizando a beleza. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Útero - VIII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



São as perspectivas que nos dimensionam o olhar, tudo o resto em seu redor. Olhando compulsivamente na mesma direcção somos adquiridos nas paisagens. A habituação enforma-nos ao ponto de nada vermos excepto o que nos é oferecido. 
É isto: 
o oferecimento do mundo tolda-nos os olhos, e de olhos toldados caminhamos a inoquidade. Em pouco tempo tornamo-nos o que pretendem: vozes acéfalas votadas à familiaridade do mundo. É a familiaridade das paisagens que nos incute a estar aí sem mais. 
Ainda assim, há quem se anseie no tropeço, quem caminhe a possibilidade última de sentido. 
É pois necessária uma devoção, um fito elevado à máxima potência, qualquer coisa como a arte tornada vida, ou, vice versa. É fundamental transbordar as possibilidades, todas as direcções. Treinar depois o vertiginoso acto de estar só, fazer com que o solipsimo vingue o inaudível murmúrio do mundo. Saber ensaiar-se na arte do salto, o primeiro gesto que nos ocorra. Correr velozmente em direcção ao precipício e estancar no último instante. Aí permanecer o tempo necessário à paragem do coração. 
Olhar então em redor e ver tudo de novo, auscultar a realidade, o olhar primevo.

Aguardar que o coração nos ocorra, pela primeira vez.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

domingo, 13 de agosto de 2017

Breve curso de introdução à economia Grega - V

Matéria 

Expulso 
                do paraíso de minha infância
                via desenhar-se ante mim o ciclo de todas as coisas

                                             incessantemente cumprindo uma qualquer lei universal

             o mundo consumindo-se em mim próprio e 
             ao consumir-se em mim próprio gerando o outro de si.

Eu, gerando em mim o outro de mim.

O mito da Grande Explosão substituindo-se ao mito 
                                                                                    do Deus Criador.

Um avanço notável, dir-se-á.

A luz e o movimento,
                                  a inércia e a lei da atração dos corpos.

O impensável transcrito no dizível,
                                                         a traição de toda a metafísica.

No entanto, 
                     ultrajado na intriga de meus concidadãos
                     Sócrates repetidamente se deliciava perante o travo agreste da cicuta
                     incessantemente proclamando a incendiada prece:


"Eis o meu fardo, eu, o sacrificado à Grega derrota!"


Rui Carvalho, s. d.

Tale of a man who whispered to the flowers - V - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Aguardo, 
                as formas caindo do Sol, incidindo directamente em teu rosto.  
Que depois se faça uma pausa - o brilho das coisas - e que essa pausa se chame: olhar-te. Acho que te oiço chegar. Neste lugar onde não há números, vontades numéricas, onde apenas há a aparição do Sol e da Lua, a derivação dos pontos cardeais. 
O homem que beijar teus olhos será o homem da tua vida. Não precisas ler livros. Não precisas sequer cair no desassossego. Chegarás à porta e verás que estou só, sempre estive. 
Espero por ti. 
Aguardo-te entre a solidão das coisas! 
Enfrento o mundo sem deus, sem uma janela que seja, sem uma janela que se abra e que te desvende. 
Nada me interessa no inexacto percurso das janelas. Procuro-me entre as pedras, entre as pedras reergo o lugar onde o amor medra.   
Procuro as portas, a saída e a chegada. 
A diferença faz-se no que criarmos. Nem bem nem mal, somente a beleza, apenas a beleza das coisas. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 12 de agosto de 2017

Útero - VII - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Em pouco tempo serei traçado pelos navios. Cargueiros de grande porte sulcar-me-ão os rombos em minha carne. Aí se reabrirão cicatrizes onde o inciso desejo buscará o seu lugar. 
Serei então perdido para te encontrar. Sofrerei de inadequação, esse vírus onde germina o ócio, a inteligência das coisas.  
Tornei-me um acidente alimentado pelos mares, pelos terríficos oceanos, esses distantes lugares onde escreverei para não morrer de tédio e não matar de ódio. 
Tal qual Jesus Cristo, fomos abandonados pelo Pai, e, no abandono nos tornámos órfãos de nós mesmos.
Contudo, jamais deixarei a vida ser coisa pouca. 
Quando o mundo chegar para me abater estarei pronto, 
                                                                                   serei já literatura.


Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 6 de agosto de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - IV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



O eco do mundo inicia-se onde já nada se espera. Termina nesse mesmo lugar. Podemos escutá-lo, como se para sempre fosse. 
O mistério é esta luz erguendo-se na escuridão, a intangível surpresa do primeiro olhar resvalando na aparição das coisas. Nem tudo são árvores, vegetação povoando-se no mais enigmático silêncio. 
Contudo, a beleza é aceitarmos a dádiva das florestas, embrenharmo-nos no ritmo dos troncos e aí sorvermos a vida durante um longo período de tempo. Logo após, estaremos aptos. 
Convoco-me no discurso do mundo, na delirante surpresa da pós apneia. 
Ao olharmos para cima somos incididos pela luz. Esse é o momento. O instante do vislumbre. A paisagem tolhe-nos até às lágrimas e no interior da visão tolhida dar-se-ão os reencontros.  
Como somos distantes, correndo como alarves para o nascimento do Sol na pretensão de o agrilhoarmos ao nosso querer. 
Assim nos magoamos mutuamente, enleados na estúpida ânsia de nos adquirirmos nas paisagens.
Apenas tua pertença me interessa. 

Do Sol aguardo apenas os raios, toda esta luz incidindo em teu rosto. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 5 de agosto de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXXVIII

XXXVIII

Rui Carvalho: a génese da Hidra do capitalismo institui-se então a partir da imposição do não valor como valor e da imposição do medo como fonte de governação. O exercício da perfídia é a condição que nos move, é a condição que possibilita o funcionamento do capitalismo financeiro?       
Void: O triunfo do capitalismo financeiro representa a tomada de assalto da economia e do poder político por parte dos banqueiros e da alta finança. Sim, a imposição do não valor como valor e a imposição do medo como fonte de governação são as duas condições primordiais do exercício da perfídia. Ou melhor, o exercício do capitalismo financeiro e o exercício da perfídia estão tão interligados entre si que se tornam uma e a mesma coisa. 
Vivenciamos uma mudança histórica no que concerne ao paradigma que funda as estruturas societárias, principalmente no mundo ocidental. Especialmente o mundo ocidental. Especialmente no que concerne à estrutura societária europeia. A mudança de paradigma. A mudança de paradigma deriva da transição de um modelo de sociedade que teve como base o capitalismo económico para um modelo de sociedade que tem como base o capitalismo financeiro. A transição entre estes dois modelos de sociedade é aquilo que está na origem da hecatombe social e política que devasta nesta altura os países da Europa do Sul e que acabará por devastar inevitavelmente a própria Europa e o modelo social europeu tal como o conhecemos.
O capitalismo económico encontrou os seus alicerces na revolução industrial e na correlação entre dois factores fulcrais, a saber, o trabalho e o capital. Neste tipo de sociedade, porque o capital não era auto-multiplicável a partir de si próprio, mas sim a partir da força de trabalho que constituía a sua alavancagem, a obtenção do lucro, o objectivo primacial deste tipo de sociedade, era completamente dependente da força de trabalho. Assim, a correlação entre o factor trabalho e o factor capital era visceralmente interdependente e como tal a relação de poder entre os capitalistas, os investidores, e a forca de trabalho, os operários, representados pelos sindicatos tinha vários factores de amortecimento que impediam a total subjugação do factor trabalho ao factor capital. As várias conquistas sociais transcritas no modelo social europeu resultam desta simbiose, desta simbiose entre trabalho e capital.
O problema. Os problemas derivam da instituição do capitalismo financeiro. O paradigma do capitalismo financeiro possibilita que o capital seja auto-multiplicável a partir de si próprio. O capitalismo encontrou maneira de prescindir do factor trabalho. O trabalho deixa de ser fundamental na obtenção do seu objectivo primacial. O lucro. O lucro financeiro pode agora ser obtido a partir do nada. O lucro financeiro pode ser obtido a partir da mera especulação. A mera especulação e a criatividade associada aos produtos financeiros permitem que a riqueza se auto-multiplique a partir de si própria. Os investidores, os capitalistas não necessitam mais preocupar-se com trabalhadores e sindicatos. Não necessitam mais preocupar-se em lidar com o poder dos trabalhadores e das organizações sindicais. O lucro. O lucro é agora o lucro pelo lucro. O capital depende de si próprio. Pode auto-multiplicar-se de um dia para outro. É desnecessário aguardar anos, décadas para que os investimentos se tornam viáveis e lucrativos. O capital é agora auto-suficiente. A auto-suficiência capitalista é a gangrena do mundo ocidental. O mundo ocidental e o seu estado de providência gangrenam ao peso do jugo capitalista. A lógica e a dinâmica do contrato social perdem cada vez mais sentido sob o jugo da gangrena do capitalismo financeiro.
A partir do momento em que são os próprios governos e os estados a sucumbir perante este estado de coisas, tornando-se reféns dos denominados mercados financeiros e tomando mesmo partido como defensores dos bancos e da alta finança, aquilo que se verifica é um claro rompimento do contrato social. Os governos que deveriam funcionar, na sua essência, como verdadeiros reguladores e estabilizadores da vida em sociedade encontram-se neste momento de tal modo conluiados e manietados pela teia habilmente urdida pelo sistema financeiro que são eles próprios os impulsionadores dos mais hediondos desequilíbrios sociais. Quando se exige a um assalariado que aufere rendimentos mínimos que contribua para o financiamento da banca, torna-se por demais evidente que estão claramente a ser ultrapassados os mais elementares limites do decoro e da mais elementar ética política e social. Quando se exige a um desempregado, ainda que a receber subsidio de desemprego, que desconte parte desse subsidio para obstar a falência do sistema bancário está-se a cometer um acto hediondo, um acto criminoso.
Se tudo isto não se trata de um claro exercício da perfídia...

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Sobre toda a escuridão - V - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Habitámos casas perto da rendição, pintámo-las de cores vivas, entre o vermelho sangue e o brilho de teus olhos. Pintados de negro, exercemos o  esforço guerreiro de durar. 
Sim, procurámos o mundo onde ele não existe.
Quanto a mim, quero apenas manter-me branco, forte; branco e alcalino como a cal. Assim saberei controlar a aridez do solo. 
Quanto às casas: todas perecerão. As casas são devolutas e, além do mais, um qualquer abrigo me serve. 
Sejamos claros: somos vitimas do passado, do nosso passado; a partir de agora apenas teremos futuro, e, algumas rosas rareando nas pétalas - silabas tombadas no abandono. 
Será que apenas eu saberei dizer as coisas difíceis? A dificuldade da partida. 

Nem mais nem menos: saberei ser a superação do deserto. Abandonar-te-ei por não saber já  como amar-te mais.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Breve curso de introdução à economia Grega - IV

Europa


Alvo touro descendo na neblina
até ti
orgulhosa filha do rei da Fenícia.
Europa, a mais bela entre as mulheres.
Eis-me!
Eis a luminosa manhã fecundando em nossa re-aproximação.
O sedutor artífice da metamorfose
pousando meus olhos em tua face.
Junto a ti sulco as areias da praia avançando mar adentro.
Montai meu dorso cor de neve
porque a Creta te conduzo,
Ó futura mãe de Minos.
Escutai meu terno mugido anunciando vossa sorte,
agora que vos é dado vislumbrar a esplendorosa visão de Zeus.
Agora,
que chegado é o instante que vos tornará pródiga.
Desfrutai célere todo o prazer que de mim emana,
Ó vós 
que breve escutareis o suplicio das hordas tecnocratas
urdindo o terror.
Vós que enredada no terror tecnocrata, 
envolta sereis em arame farpado
pelos ignóbeis fantasmas que vos assolam.
Todo um Mundo em teu redor,
Ó bela e doce Europa 
transmutada
no ignóbil condomínio privado que hoje sois.
Em tuas praias, aos milhares
a Humanidade sucumbindo à vil ganância desta corja
implodindo o mundo.

Aviltando os dons de Zeus, teu fecundador.

Rui Carvalho, s. d.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXXVII

XXXVII

Rui Carvalho: Parece termos passado de um tempo onde o poder era exercido pelo mais forte para um tempo em que o poder é exercido pelo mais pérfido. Qual o poder mais justo, o poder do mais forte ou o poder do mais pérfido? 

Void: A auto-preservação. A auto-preservação mostra-se o facto moral elementar que socorre a transição entre o poder do mais forte e o poder dos muitos. A necessidade de preservação da existência física individual torna-se uma lei da natureza a partir do momento em que os mais fracos adquirem a consciência que são muitos. A consciência de ser muitos dos mais fracos tem como contrapartida a consciência que o senhor adquire de que a sua vida corre perigo. O senhor passa a poder vislumbrar a sua morte à mão dos muitos. A génese de todos os conceitos de justiça e de direito estão directamente fundados nessa necessidade vital, nessa busca racional da auto-preservação. 
O receio da morte, o receio da morte violenta é o impulso que conduz o humano até ao advento do estado liberal. A injustiça e o erro mostram-se assim como factores que conduzem à violência, à guerra e à morte. 
O estado de direito não só se funda, como verdadeiramente nasce a partir das cinzas do estado de natureza. Antes da instituição do estado de direito e da positividade da lei, apenas existia o direito natural, o direito natural de cada um a preservar a sua própria existência permitia-lhe utilizar todos os meios indispensáveis à conquista do fito da própria sobrevivência, inclusive a violência. 
O antídoto fulcral para a anarquia que grassa o estado natural foi a instituição do Estado. O Estado é estabelecido a partir do contrato social pelo qual todos os homens concordam em abdicar do seu direito natural a todas as coisas e a contentarem-se com a mesma quantidade de liberdade em relação aos outros que permitem em relação a si próprios. A legitimidade do estado de direito reside justamente na sua capacidade de proteger e preservar os direitos que todos os indivíduos possuem enquanto seres humanos. 
O direito fundamental é o direito à vida, isto é, a preservação da existência física de todos os seres humanos e o único governo legítimo será aquele que seja capaz de preservar adequadamente a vida e evitar o regresso à guerra de todos contra todos.
Não existe pois uma “justiça ontológica” que justifique o exercício do poder. O exercício do poder deriva de uma necessidade prática. Neste sentido também as noções de justo e injusto são "meras" necessidades práticas. 
A perfídia evidencia-se quando o exercício do poder não cumpre esse paradigma, essa necessidade prática de prover a preservação da existência física de todos, nem a existência física nem a existência espiritual. O espirito, o único foco de sentido capaz de dar sentido às nossas vidas é a cada segundo destruído pela deriva capitalista. É aí que reside a perfídia, na deriva capitalista. Na imposição do não valor como valor. Na imposição do medo como fonte de governação.     


Rui Carvalho, s. d.