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quarta-feira, 30 de maio de 2018

Desertos - XLII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Alguns lugares são inclinados, descem até às raízes das árvores. Apontados ao centro da terra, aí nos olharemos pela primeira vez. Despidos de roupas somos assim: pedaços de carne, diluídos até à putrefação. 
Abandonámos os quartos vazios, deixámos as salas plenas de insectos. Dirigimo-nos depois para longe. 
Alguns quilómetros antes do fim julgamo-nos perto de vencer o mundo. Basta contudo breves segundos para que tudo se desvaneça. 
Ainda assim, é importante o modo como nos damos à morte. 
Vamos sendo arquivados no fluxo das coisas, será nesse fluxo que ocorrerá nosso rasto. As direcções são múltiplas e, há escolhas que não têm retorno. O horizonte é longo e curvilíneo. Desse facto se infere a impossibilidade do voo. Boca a boca acendemos pequenos luzeiros. Como morcegos, irrompemos as cavernas guiados pelos ecos emitidos. Assim vamos caindo até rasarmos a descrença. 
Tornamo-nos voláteis. Voláteis e inúteis. Não há como evitarmos a perda das asas. Mesmo que a madrugada ocorra não deixaremos nunca de vagar na sombra do que fomos.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sábado, 26 de maio de 2018

Desertos - XLI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



O tédio invade-me, irrompe por dentro das casas. Depois, em longos tragos, a inundação desapropria-me das várias dependências. Todas excepto uma. Aquela que comigo formará uma necessidade básica: o solipsismo, a pre-condição para que a existência ocorra.  
Os nossos passos tropeçam o chão e, além do mais, deus recusa o comércio dos homens. Essas são as duas condições que nos revelam quem somos. Ocupamo-nos de coisas supérfluas, nada que esteja directamente adstrito à noção de peso. Ainda assim, acedemos ao peso por via indirecta. Após o tropeço rasamos o chão. Somente então são nossos focinhos guiados para a assimilação das profundezas. Antes da queda o solo é uma realidade indescernível. Somente na queda o mundo nos dança.     
“A angústia faz-nos dançar!” - terá dito o Mestre.
Entretanto, haverá que aguardar o último instante antes que a loucura se instale. Enquanto isso, percorramos o percurso das sombras, brindemos o amor e o ódio, todas as artes perigosas em demasia. 
“Com as pedras afiadas dentro dos bolsos desafio-vos para o exercício da queda!” - terá ainda dito o Mestre.  
Então sim, estaremos aptos para ouvir-nos os ossos, o trote ascendente do cavalo de Turim.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Desertos - XL - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Fornicando o dilúvio, Jocasta levita os espasmos até que Édipo perca a visão. Antígona permanece emparedada entre os meus olhos. Sigo o mesmo caminho de sempre, percorro-me até à densificação do solo. A paisagem intensifica-se e, como se nada fosse, as paredes ruem. Após haverem ruído tudo fica a descoberto; a loucura, inclusive. Da vulva da viúva de Laio irrompeu o trágico desmando, os longos frutos do incesto. 
Toda a sorte me abandonou com excepção de Antígona, minha filha. Somente Antígona não me abandonou ainda. Foram curtos os meus dotes de pai e ainda assim sou bafejado no amor filial. Expulso de Tebas por meus próprios filhos, vago agora o que de mim resta, meu próprio exílio no rio dos mortos. 
Tal qual a paz, a guerra não conduz a lugar algum. Polinice e Etéocles, meus filhos, morrerão na cobiça, e na cobiça darão meu trono a Creonte. Somente Antígona permanecerá no amor. Perante o insepulto cadáver de Polinice se reerguerá a sua dor. Contrária à proibição imposta por Creonte, pois que quem sem os rituais fúnebres morresse condenado seria a vagar as margens do rio que conduz ao mundo dos mortos, sem poder jamais alcançar o outro lado. Com suas próprias mãos, Antígona enterra seu infeliz irmão. Ao enterrá-lo se enterra em sua própria morte. 

Emparedada entre meus olhos, assim Antígona permanece. Desde agora, para sempre.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 6 de maio de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XL - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



É exactamente assim que o espanto ocorre: pé ante pé, aventuramo-nos mundo adentro. Entramos vagarosamente pelo interior das marés, e no interior das marés somos sulcados pelas ondas. Há um ir e vir, um movimento circular. Não o movimento dos êmbolos, indo e vindo de trás para a frente. Um movimento esférico, um ruído rodando em redor do silêncio. É nesse movimento que tudo apreendemos. Entre os espasmos de prazer e o cerne da angústia, a eterna repetição do mesmo toca ambas as extremidades das coisas. O bem e o mal. Aquilo que denominamos como bem e mal é parte integrante desse mesmo movimento. Somos uma e a mesma coisa. Não há várias realidades. Há apenas bolhas de sentido que criamos para nossa protecção. Protegidos pelas bolhas julgamo-nos a salvo. Tentamos esquecer-nos da possibilidade fulcral, o rebentamento. Que apenas no rebentamento o mundo ocorre. Após o rebentamento somos dados na estranheza, e é na estranheza que nos aproximamos da perda de pé. As ondas vão e vêm, conduzem-nos com elas. Por vezes o rebentamento é tão forte que perdemos os sentidos. Isso, é a perda dos sentidos que nos exige a re-orientação. 
O humano, este esforço constante. Um mundo dado entre a luminosidade e a queda. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho