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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Útero - XI - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Seria necessário um milagre para que os carreiros deixassem de ser lugares infectos, para que reencontrássemos os caminhos; algo como o re-acontecimento de Abraão, o peito de Isaac a descoberto aguardando em desespero. Talvez assim voltasse a haver futuro, qualquer coisa outra, qualquer coisa mais que todo este passado à minha frente. 
Sem fé, condeno-me ao degredo as mãos gastas de tanto caminhar. 
Desabitei-me das cidades procurando lugares ermos, os corações em chaga dos pobres de Deus.
Transponho-me às costas o percurso até ao fim.
Talvez as palavras possam elevar-me junto ao patamar dos deuses, esse distante lugar onde o vento é certeiro. Essa é toda a esperança que me resta. 
Possamos nós ser amantes, tornar-nos loucos ou vingar na mentira. Que o amor possa visar a incerteza, torná-la um tiro certeiro nos cornos do mundo.

“Lovers, thieves, fools and pretenders!” 

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Love songs to no one else - IXX

IXX
De qualquer paixão, o início é não poder viver sem música. Não poder outra coisa que não a escuta dos sons provindo no silêncio. De olhos cerrados, recostar-me em tua voz. Escutar-me então  o quanto me encantas. 
Ser perto de ti. 
Tão perto que possa beijar-te as pálpebras. 
Ser contigo o sentido do mundo. Uma visão. Somente uma visão. Nessa visão juntos olharmos para além das coisas. Não para dentro delas, mas para lá delas mesmas. Fazermos o redor silenciado em nosso olhar. Somente a nós nos vermos. Afugentarmos as sombras dos outros, o que ainda restar das aparências. Visarmos apenas o essencial, o essencial do que é essencial. 
O amor. 
Os teus olhos por dentro de meus olhos. 
Refazermo-nos da queda quando a queda chegar. Adequar-nos ao talento de restar. Restar-nos de tudo e de todos. Sermos firmes de mãos dadas. 
Virá o momento que não mais saberemos que fazer para durar, isso é certo. O tédio colar-se-á à rotina e a rotina será tudo o que teremos. Seremos então postos à prova. Haverá a mais longa planície e nela nos deslocaremos, sem água nem mantimentos, somente passado e futuro. 
Aí apreenderemos a importância do solo. 
Nesse lugar longínquo onde todo o presente se esvai, apreenderemos a importância de teimar. A importância de ficar, fincar pé no solo até que as raízes cresçam. Assim ficaremos, sem uma palavra que seja. Nada diremos, excepto o silêncio dos corpos vibrando por dentro da alma. Aguardando o resgate. Os ouvidos do mundo escutando a duração do silêncio, nos milénios transpostos. Nos milénios transpostos no instante do toque, no aquecimento dos corpos até ao concreto da loucura.

Rui Carvalho, s. d.

Útero - X - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



São os flocos de neve inscritos no solo que me apaziguam a intensidade da névoa, essa promiscuidade do gelo na paisagem. 
Entretanto.
Há uma beleza que me resta desde a antiguidade do solo, uma espécie de murmúrio que me irrompe no desejo das ervas, por entre a relva resplandecendo até ser tarde. 
Aqui me habito nos desastres, é deles que me alimento.
Enquanto isso, em ânsia aguardo a aquisição deste maldito dom. Como quem guarda em si a morte do corpo, em oração me regrido até rasar o rompimento das águas. 
Após rasar o útero do mundo serei de novo prestes no dom do esquecimento, essa longínqua maldição tornando-me apto a suportar o inefável peso do saber, o alagar dos olhos até à profusão do esquecimento. 

É isto: nada resiste à barbárie dos dias, sequer os dias eles mesmos.



Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 24 de setembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Acabarei guardado num livro, no cimo de uma mesa onde não mais poderei transbordar.
Ainda assim: 
aguardo essa luz, incidindo de cima para baixo e de baixo para cima, descrevendo linhas entre-cruzadas, perpendiculares ao som de teu riso. Seguirei esse destino. Nele saberei desenhar-me.  Saberei seguir o curso dos rios de luz que nos entre-cruzam. 
Reservo-me a escolha das planícies onde me habitarei nas montanhas. Nelas farei fincar meu corpo para que o espírito aí transcorra. Não, nada poderia ocorrer de outra maneira. Nada poderia ter ocorrido de qualquer outra maneira. 
Saberei desenhar-me, pintar meu corpo para a guerra. 
Saberei situar-me, entre o início e o fim. Entre o início e o fim de algo que ainda não sei bem o que será. De qualquer modo, tudo farei para que me possa implodir na grandiosidade, por dentro de qualquer coisa grandiosa. 
Se não nos soubermos dirigir em direcção da plenitude nada terá valido a pena. Não terá valido a pena termos dado sequer um passo, um passo que seja. É essa a única verdade que necessito saber. Isso e o nojo pela mesquinhez que nos habita os corações. Esta estúpida normalidade, vingando como se fosse a única possibilidade. 
Naquilo que me concerne, estarei disponível para ir até ao esgotamento do possível. Somente quando todas as possibilidades estiverem esgotadas me deixarei abater.
Serei então guardado num livro, no cimo de uma mesa onde não mais poderei transbordar. 

Habitarei minhas cinzas e minhas cinzas habitarão a plenitude do universo. 


Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Love songs to no one else - XXXVI

XXXVI

Que teus olhos me vertam no dom da escrita, e que por detrás de teus olhos haja o brilho do mundo. Hajam as tardes para que eu te veja e sejam as tardes o breve sonho dos astros, esse lugar onde te sinto. A ti que me iluminas as noites com a recusa do sono. 
Por ti passo meu corpo, as fragrâncias onde anseio para sempre seres minha. Possa a passagem do tempo ser reduzida à solidez do teu toque, e que em teu toque me sinta a permanência das coisas. Que em ti me traga o universo dançando, e na dança dos corpos o ruído me perca. 
Acho-me correndo os olhos em ti, a reciprocidade do desejo, esse olhar que me cercas com a certeza do salto. Que o medo da queda seja menos que o querer-te nua entre meus dedos. Que te deixes volátil no terno ar que te povoa o desejo. Que nele te deixes fixar, e assim povoados sejamos no sexo singrando-nos as vidas. 
Vislumbro-te os seios descendo-te o rosto, esse lugar onde permanecerei o infinito tempo das sementeiras; aqui aguardo a tua colheita, a feitura do vinho onde beberei tua boca. Remontarei  depois ao sopro da vida, à dionisíaca presença dos corpos dançando os instantes felizes. Relembraremos tempos Antigos, Dionisio vertendo-nos como néctar divino.  
Entre tuas pernas espoletarei o gatilho do mundo. O girar das línguas nos sexos até ao irromper dos astros. Haverá a irrealidade crescendo connosco. Connosco cresceremos o longínquo tempo das bacantes. A animalidade surgindo por entre as árvores, essa ténue surpresa elevando-nos as almas e os corpos, fundindo o delírio dos gestos até que a alma nos reverta as paisagens.   
Pudera eu reverter-nos à mitologia, Ariadne, minha doce Ariadne. Pudera reverter o mundo em meus perdidos gestos. Pudera eu reverter o lugar onde te perdi, rever-nos no aqui e agora a perenidade do leito onde desde sempre te pressinto.

Pudera eu reverter-nos na demiurgia as primeiras horas da criação do mundo, Ariadne, minha doce Ariadne. 

Álvaro Cunhal, s. d.

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - X - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Entre um corpo e outro corpo nada há. Nada excepto o vazio que nos habita. De tempos em tempos ocorre uma qualquer ignição. Por vezes, a ardência é tanta que chega a incendiar-nos os mundos.  
É pois fundamental que saibamos preencher esse espaço; que, como loucos, nos desencarceremos nos nano-milímetros que nos separam. Que depois de desencarcerados possamos então olhar o vazio em redor. Que aí possamos visar uma brecha desde onde possa ocorrer o dilúvio. 
Tornados um só, aguardaremos então ser chamados ao embarque das cidades novas. Haverá o oceano em redor e nele perdurará o silêncio dos crepúsculos. Tornar-nos-emos Noé, o homem avisado para os chamamentos do mundo. O mundo chamar-nos-á até à proximidade da ruptura e será esse o instante em que nos tocaremos. 
Beberemos então toda a água vertendo em nossos corpos, o sinal da aliança, o universal signo da alegria. 

Que entre meu corpo e o teu corpo nada haja, nada excepto a paixão que nos situa.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 16 de setembro de 2017

Útero - IX - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho





No inicio nenhum peso havia. Nada mais havia a não ser o fogo, a precisão das chamas lançando-nos ao encontro da paixão. Os dias eram claros como água, e, como água, saciavam-nos as incertezas. Nada pedíamos ao saber das coisas, nenhuma verdade que pudesse perder-nos os sentidos. Vertíamo-nos no fluir das horas, nele provávamos os vinhos provindo nossas bocas. Sedentos de vida chamámos a nós os rios onde mergulhar os corpos. 
Cometemos, contudo, o erro de todos os principiantes; olhámos a copa das árvores e aí julgámos vislumbrar a certeza do mundo. Quisemo-nos colar nessa certeza, balançarmo-nos nos ramos a pressa de nos mantermos os mesmos. 
Caminhámos até onde foi possível caminhar, até à insuficiência das possibilidades. Sim, o percurso daquilo que queremos é sempre mais longo que as possibilidades disponíveis; a exiguidade do mundo nunca se mostra suficiente quando a vontade nos é em chamas. Assim, continuamente nos espatifamos de encontro à realidade, e, após nos espatifarmos, ansiamos tornar-nos invisíveis. Tentamos gestos impossíveis para não voltar atrás, para não desistirmos dos sonhos. 
Tal como o mundo, somos em metamorfose, e isso é tudo o que sabemos. Tornamo-nos outros a cada segundo e o tempo é uma realidade impossível de suster; as intempéries contrariam-nos a vontade, dotam-nos com a insegurança das coisas. 
Fomos de mãos dadas até ao suor das mãos e foi esse o lugar onde escorregámos os corpos. 
Percorrermo-nos de novo seria persistir no mesmo erro, termos de novo nossas vidas em desalinho, mantermos-nos textos que já não batem certo com o vicejar das paisagens. 

De qualquer modo, fomos até onde deveríamos ter ido, até ao findar das possibilidades…

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho



Purple series, n.º 3 - by Steven Space


Breve tratado acerca da arte de jardinar

Uma obrigação: amar particularidades, detestar pessoas em geral.

Rui Carvalho, s. d.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Sobre toda a escuridão - VIII - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Poucos são os objectos à altura dos nossos olhos e há distâncias impossíveis de elidir. Ao aproximarmo-nos da realidade a realidade afasta-se de nós, e, quando nos afastamos, a realidade aproxima-nos. 
A dada altura, a morte ser-nos-á tão próxima que nela tropeçaremos. 
De qualquer modo, quando deixarmos de nos colocar perguntas as perguntas encarregar-se-ão de vir até nós. Bom, desde que não sejamos completamente imbecis, o que já não é coisa pouca. Um pouco antes da morte, o mais tardar, será esse o momento da descoberta dos instrumentos. Descobriremos que os instrumentos não têm apenas uma funcionalidade, que a instrumentalidade do mundo nos é transmitida na função do tropeço. Que continuamente tropeçaremos nas coisas, como crianças, e, que, na verdade, nunca deixaremos de fazê-lo. 
Seria pois fundamental treinarmos os gestos, colocarmos os corpos em sintonia com o rasar do risco. Sabermos depois encarar o vazio, esse peso que nos suga, de dentro, para dentro. 
De qualquer modo, as vísceras aguardam-nos um destino animalesco, tornar-nos-ão podres de desconhecimento. 

Que o mundo me seja rente à precisão dos ossos, o feroz momento em que a carne se rasga até ser um sortilégio de lugares difusos. 

De qualquer modo…


Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - IX - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Assim se deve viajar: aproximando-nos das crateras, cingindo os olhos ao infinito, o lugar onde não te vejo como se te visse. Alguns vulcões adormecidos atingirão então o estado de pré-ebulição. Será nesse local que instalaremos a primavera em redor dos nossos corpos. Aí, onde  o escorço das paisagens se desenha, faremos uma tangente ao lugar onde a alegria é prestes. Seguiremos depois em frente, continuando sem destino. 
Após o cansaço, e, por não haver leito onde nos deitarmos, seremos o privilégio de ler as estrelas. Olharemos o céu aberto, a luz que flui desde o início dos tempos. As vozes abrir-se-ão e  sobre nós se exercerá a surpresa. Far-se-á o que houver a ser feito para que a vida se aproxime do todo, para que nossos corpos atinjam o cume das coisas. 
As paisagens ser-nos-ão presentes, e, apesar da lonjura do mundo, viveremos o rigor de todas as possibilidades.    

Assim se deve viajar: cingindo os olhos ao infinito, o lugar onde não te vejo como se te visse. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - VIII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Que meus olhos se rasguem restando na procura e com as estrelas me reste o caminho até aos teus.
Que seja intenso o teu olhar, tão intenso que no mar acenda as chamas em meu corpo. 
Que meus olhos caiam com as estrelas, que com as estrelas celebrem teu percurso. Da foz para a nascente, que o mar atinja a inversão das ondas para que as ondas vaguem até mim. 
Possa eu perder-me. 
Seja eu perdido na longínqua certeza dos oceanos. Que meus bolsos possam conter as vagas e que, contidas as vagas, possa recordar o lugar onde a alegria existe.  
Pouco resta do que fui, pouco mais que os descendentes precipícios, algumas estrelas que ainda guardo e o imenso mar dançando as minhas cinzas.  
Assim sendo:
Que meus olhos se rasguem restando na procura e com as estrelas me reste o caminho até aos teus.
Seja intenso o teu olhar, tão intenso que no mar acenda as chamas em meu corpo. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho