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sábado, 7 de julho de 2018

Entrevista a Sebastien Void - XLV

XLV
Rui Carvalho: Podemos inferir que, do teu ponto de vista, a democracia nos trouxe a um beco sem saída?

Void: É a correlação dialéctica dos opostos que funda a realidade. Como em tudo o resto, também a história humana obedece a um processo dialéctico. A dialéctica senhor/escravo, é essa a correlação na qual se fundam as sociedades humanas. 
A instituição das democracias modernas tem como fundamento o reconhecimento da humanidade dos escravos. A relação senhor/escravo é entrecortada pelo advento do reconhecimento do servo como um igual. A partir do reconhecimento do direito universal ao voto é reconhecida a igualdade do servo perante o senhor. Os senhores passam a reconhecer nos escravos a sua humanidade. A partir do reconhecimento da humanidade dos escravos somos instalados numa situação de entropia. Não obstante o reconhecimento, este reconhecimento não é um reconhecimento altruísta, isto é, não é um reconhecimento que “venha do coração.” Ao reconhecer o servo como um igual o senhor quer unicamente sentir-se prestigiado. O prestígio. É a partir do reconhecimento do servo como um igual que os senhores alcançam o tão almejado prestigio. Isso mesmo, o reconhecimento e o elogio são muito mais valorados se provierem de alguém que respeitamos ou em quem confiamos e, sobretudo, se for dado livremente e não sob coação.
Neste contexto, o reconhecimento do servo como um igual é um reconhecimento circunstancial. O senhor reconhece o servo como humano unicamente para que nele possa projectar o seu sentimento de vanglória. Ao reconhecer o servo como humano, ao aceitar o sufrágio universal e a igualdade de direitos, o senhor fá-lo para encontrar a contrapartida do reconhecimento. No entanto, o servo não deixa de se exercer na servidão. A servidão do servo é o trabalho. O servo trabalha para o senhor como um assalariado. Os seus direitos são como que direitos de segunda ou terceira classe quando comparados com os direitos de que goza o senhor. Por conseguinte, o senhor reconhece no servo o seu direito à humanidade, mas não o seu verdadeiro valor humano. O que o senhor espera do servo é a contrapartida de ser reconhecido como tal. O senhor reconhece a humanidade do servo mas de um modo insidioso. 
É pois esta completa ausência de reconhecimento que gera no servo o desejo de mudança.  A posição de subserviência do servo é uma posição que a longo prazo se torna insustentável. À medida que o servo revela progressos no que concerne à sua educação, progride também no que concerne aos seus níveis de ambição. Os servos são muitos. A determinada altura o servo adquire consciência do poder, do seu incomensurável poder enquanto parte dos muitos.
No trabalho o servo recupera a sua humanidade, a humanidade que perdera com o receio da violência por parte do senhor. Através do trabalho o servo começa a perceber que, enquanto ser humano, é capaz de transformar a natureza. É neste contexto que o trabalho aparece como que representando a liberdade do escravo. O trabalho constitui uma demonstração da capacidade do homem em ultrapassar o determinismo natural. No trabalho o servo adquire a capacidade de criar através do seu labor. 
O senhor havia demonstrado a sua liberdade ao arriscar a vida numa batalha sangrenta, revelando assim a sua superioridade sobre o determinismo natural. O servo, pelo contrário, concebe a ideia de liberdade trabalhando para o senhor. Trabalhando o escravo acaba por se aperceber que, enquanto ser humano, é capaz de executar um trabalho livre a criativo. E que executando o seu trabalho adquire capacidade para alterar o curso da natureza.
O servo tem pois que considerar a sua liberdade em abstrato antes de a poder gozar na realidade e na sua plenitude. O escravo é impelido pelas suas circunstâncias a inventar os princípios de uma sociedade livre antes de a poder experimentar. A consciência do servo torna-se, pois, superior à do senhor no sentido em que é mais auto-consciente; mais reflexiva quanto a si própria e à sua condição. Antes de desafiar o senhor, o servo atravessa um longo e doloroso processo de auto-educação. Ao reflectir sobre a sua condição e a ideia abstracta de liberdade o servo atira fora várias versões preliminares de liberdade antes de chegar à verdadeira ideia de liberdade.
A questão que se coloca é se chegámos ao fim de dialéctica, sendo que o fim da dialéctica implica o fim da história, se com a democracia atingimos uma sociedade na qual já não existem mais contradições internas. Se assim fosse, a instituição da democracia ter-nos-ia trazido a um beco sem saída. Mas, não. As contradições internas da nossa sociedade são-nos postas fora de visão pelos meios de comunicação em massa. Somos massificados na mentira, no delírio da constante felicidade. 
Há, contudo, uma contradição fulcral que nos situa, o embate entre o homem quantitativo e o homem qualitativo. Não, a isotropia não é uma condição natural. A isotropia é uma fabricação urdida pelos muitos, pelo homem quantitativo. A existência do homem quantitativo depende do adormecimento das sociedades. A luta, a luta é contra o homem quantitativo. A luta é contra o adormecimento, contra o estúpido poder dos muitos. Enquanto houver um homem que pense jamais a contradição será elidida. É necessário saber saltar o muro do beco para onde somos conduzidos como gado.


Rui Carvalho, s. d.