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sábado, 25 de fevereiro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXVII

XXVII

Rui Carvalho: Esse discurso das diferenças é um discurso legitimo, contudo tudo nos é tecnicamente dado de uma forma cada vez mais mimética. Como exercer a diferença num espaço onde reina o mimetismo?

Void: O humano é cada vez mais um exercício de mimetismo. Vivemos soterrados numa vertiginosa sucessão de factos. Nós mesmos nos tornámos meros factos. Cada vez mais a realidade é vivida de um modo factual e cada vez menos de um modo vivencial. O facto da realidade ser um advento cada vez mais factual lança-nos no amorfismo. A imensa maioria dos humanos são seres factuais e amorfos. Exercemo-nos como uma sucessão de factos. Somos diluídos na realidade dos factos de uma forma vertiginosa, a uma velocidade estonteante. O facto de sermos lançados no estonteamento impede-nos de visar a realidade de um modo vivencial. O percrustar vivencial da realidade mostra-nos a realidade no modo de montanha russa. É o medo que nos faz escusar à  vivência da montanha russa. Ao recusarmos a montanha russa é como se nos deixássemos ficar à superfície das coisas. É pois na superfície das coisas que nos deixamos deslizar na factualidade. Esse deslizamento na factualidade impede-nos permanecer, ficar perante o que nos é mostrado. Vivemos nossas vidas de um modo aproblemático, como se todas as respostas já nos estivessem dadas à partida. Quando nos deparamos com uma situação problemática ou aporética  socorremo-nos da sebenta dos outros. A sebenta dos outros é a nossa muleta. Essa sebenta dos outros é construída pelos meios de comunicação. A muleta dos meios de comunicação gere as nossas vidas. O nosso amorfismo é responsável por que tal aconteça. Os meios de comunicação formatam a nossa visão do mundo. Somos pululados pela miriade de comentadores comentando factos, resolvendo-nos as vidas. É impressionante o encicplopedismo de quem nada sabe acerca de tudo, que tudo sabe acerca de nada. É nesse meio que grassa a intensa necessidade de entorpecimento. Entorpecidos, deixamo-nos conduzir na extensa planície dos factos, dos factos que se sucedem. Ao acompanharmos a vertiginosa sucessão de factos tornamo-nos nós mesmos realidades meramente factuais.
A diferença advém, precisamente, de uma recusa a habitar a vertigem. A diferença estabelece-se na necessidade de contemplação.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Desertos - XV - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Contemplo a descoberta do chão, algo que ainda me surpreenda mesmo quando já nada me possa surpreender. É esse o segredo. Dar continuidade à paixão até que do chão se descubra o que nas pedras se esconde. É fundamental saber olhar as pedras, nelas descobrir o cintilar das estrelas. Apreender a arte da joalharia. Procurar caminhos pedregosos e através deles dirigir-me no mais agreste troço. Saber que nada sei. Ser o desejo de aprender esse dom: a extração da beleza no pior imaginado. 
Sobrevivo os escolhos, toda a estupidez dos homens. Esse fétido cheiro de lixeira a céu aberto. Olho os homens ruminando o mundo, como ratos, despejados na mania da superioridade. Tão imbecis. Atávicos no imbecil mimetismo dos outros. Desejando a vanidade, todo o poder imbuído em suas mãos vazias.   
Este chão que me incide, que pelos pés me arrasta até ao concreto do cimento. Percorro-o com a incerta certeza de saber que estou certo. 
Comigo arrastei tempestades, searas onde me colhi. Fui improvável. Fui improvável até tornar-me quase deserto. Habitei a destreza de minha infância até torná-la imprópria. Sim, tornei-me velho antes ainda de o ter sido. Arrastei o chão até minhas mãos, transpu-lo até perto das nuvens e com ele me voei. Voei-me, até que as aves grasnassem meu nome. 
Eis-me.
Aguardando a presença do céu, um qualquer simples gesto em teu corpo.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Desertos - XIV - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Em baixo, chegam e partem comboios. Ao longo da linha férrea há um frio que me tolhe. As barras de aço são em frente, convergem no ponto de fuga. Convirjo com as barras, um olhar que me dança sobre os carris. Tanto metal indicia um estado de coisas, algo como uma espessura. A essa espessura chamamos mundo. 
Perante mim, a extensão da realidade. Não apenas uma coisa extensa. Uma densidade que me ecoa. Passageiros e mercadorias, a azáfama do mundo. É a azáfama que me transporta às coisas. 
O que vemos é em nós. Somos o que vemos. Quando um muro nos embate, a colisão é-nos interior. Acho que pretendo tornar-me aço, algo como: esta desértica paisagem. Permaneço, até que me torne quase idêntico ao que vejo. Melancólico. Estruturado. Uma estrutura de ferro forjado suportando o embate do mundo. 
Torno-me apto para o combate. 
Apronto-me. 
Aponto ao horizonte mais longínquo, um lugar chamado Itaca, alguns milénios atrás. Penélope, minha amada, Telêmaco, meu adorado filho. 

Sou, entre o desencanto da partida e o desconhecimento da chegada. Surpreso do que está para ser.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXVI

XXVI

Rui Carvalho: Ok, em democracia podemos sempre escolher uma coisa ou outra, mas não será que essa escolha entre uma coisa ou outra é de tal modo manietada que jamais nos é dado escolher entre coisas distintas e, pelo contrário, desembocamos sempre na escolha do mesmo?
Void: Sim, vivemos uma espécie de simulacro democrático. A teia urdida pelo sistema financeiro a partir do seu grande instrumento de poder, os denominados mercados financeiros, coloca completamente à sua mercê o poder político.  
A comunicação social encontra-se, ela própria, completamente manietada pelo poder financeiro. Os jornais e as televisões são pertença da alta finança e dos grandes grupos económicos. Tal facto conduz à manietação do sentido de voto das populações através de uma opinião pública bipolarizada em torno de dois grandes partidos que se revezam entre si no acesso ao poder político. 
Vivenciamos um período de absoluta esquizofrenia social. Vivenciamos a esquizofrenia social do homem sem propriedades, do homem meramente quantitativo. É impossível que uma mesma pessoa seja, ao mesmo tempo, um capitalista neoliberal e um cristão. Contudo, existe um miriade de indivíduos que advogam sê-lo. Tal só pode significar que, ou estamos perante gente destituída de qualquer sentido de realidade ou estamos perante gente ignominiosa.   
As palavras, o pensamento, o significado não têm ressonância, deixaram de ter ressonância. O homem sem propriedades é meramente adestrado através dos reflexos condicionados. Quando a generalidade das pessoas vota não o faz com uma verdadeira consciência política do seu acto. O voto da generalidade das pessoas ocorre como uma espécie de voto televisivo no actor de uma telenovela. A gente vota no actor mais apresentável. As pessoas sabem lá o que verdadeiramente distingue a esquerda da direita política. Por vezes é mesmo difícil fazê-lo. Por exemplo, esquerda e direita usam quase o mesmo discurso patriótico, de defesa da pátria. Claro que continua a existir uma diferença entre esquerda e direita, mesmo agora essa diferença existe, ela sente-se no modo como as pessoas são tratadas. Há uma diferença clara entre o discurso doentio de um Passos Coelho e o discurso do António Costa. Mesmo quando todas as diferenças parecem esbater-se, mesmo quando se institui à martelada o instituto do fim das ideologias, o estúpido discurso do fim da história, existem sempre diferenças, por mais ínfimas que possam parecer. É a essas diferenças que nos devemos agarrar. Devemos saber agarrá-las e fazê-las crescer.




segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Desertos - XIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


 Para lá deste céu apenas existem ruínas, os escombros de uma qualquer explosão. Um deserto idêntico a nada haver.
Contemplo o horizonte, aí viso o plano onde terra e céu se unem. Interpostos no mar. Esta abstracção de linhas sobrepondo-se à paisagem. Nas linhas leio tudo que nelas se inscreve. O tempo, transcorrendo.
Desenho um ponto imaginário no espaço e nesse ponto vislumbro o equilíbrio. 
Recupero o tempo perdido, acho.
Coloco um pé no ponto imaginário e com o outro pé empurro os dias até onde me seja possível empurrá-los. Acompanho assim o percurso dos astros. Gravito a paisagem, tento descrever uma órbita certeira. Entre um lugar e esse mesmo lugar. Algo como a eterna repetição do mesmo. O mesmo peso caindo, repetidamente. O mesmo peso levantado, indefinidamente. 

Colo o mundo em meu peito e nele tatuo o declínio. Nada mais. 

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXV

XXV

Rui Carvalho: a “trampa que se constitui como cerne do mundo”, tal como o afirmas, é a trampa capitalista e todo o arsenal de falácias politico sociais que são geradas pelo sistema financeiro, e que lentamente nos corroem. Estamos enredados numa espécie de teia. O sistema financeiro é a aranha que governa o mundo. Somos reféns nas garras dessa mesma aranha. Há toda uma teia de interesses que enreda os centros de poder. Tanto o poder politico, quanto o poder jornalístico são reféns do sistema financeiro. É esta condição social de algum modo reversível?

Void: O instinto é aquilo que é comum no humano. Desde cedo somos conduzidos pelo instinto. É precisamente a proliferação do instinto, ausente de quaisquer regras, que se encontra na génese do capitalismo e das sociedades capitalistas. O Laissez-faire consiste justamente nessa necessidade de deixar o instinto germinar sem o entrave de regras que o coíbam. O Laissez-faire, enquanto expressão que simboliza a pureza do liberalismo económico, indica-nos a necessidade do mercado funcionar livremente, aceitando-se somente os regulamentos necessários à protecção dos direitos de propriedade, essencialmente o direito à propriedade privada. 
Para os sistemas capitalistas a unidade básica das sociedades é o indivíduo e o indivíduo tem o direito natural à liberdade. No âmbito capitalista o direito à liberdade do indivíduo é conseguido se se deixar a ordem das coisas funcionar, sem os entraves de regulamentos que impeçam a livre proliferação da riqueza. Para os dogmáticos da religião capitalista (sim, o capitalismo é uma forma de religião), o sistema capitalista é entendido como um sistema harmonioso e autorregulado que funciona por si mesmo. 
O ideal capitalista consiste em realizar o maior lucro possível no mais curto espaço de tempo possível. Não importam os meios para atingir a finalidade do lucro. A única coisa que realmente importa é o preenchimento do objectivo. O lucro. É ridículo pensar um empresário ou um industrial com ética. O capitalismo e a ética são entidades contraditórias entre si. Mesmo que um empresário com ética hipoteticamente existisse, o mesmo seria desde logo trucidado pelas leis do mercado, pelas leis da concorrência, isto é, jamais obteria o almejado sucesso empresarial. 
O capitalismo é contrário à ética. A ética consiste justamente em atentar nos meios para atingir os fins. No sistema capitalista, todo aquele que atente nos meios para atingir os fins é desde logo ultrapassado, trucidado mesmo. 
Ou se pretende uma sociedade capitalista ou se pretende uma sociedade com ética. Não é possível termos uma sociedade eticamente capitalista, isso é uma impossibilidade ôntica.  
Sim, é possível a escolha. Há sempre uma alternativa para um determinado estado de coisas. Trata-se de escolhermos se pretendemos habitar uma sociedade capitalista ou se pretendemos habitar uma sociedade com ética. A escolha é simples. Ou uma coisa ou outra.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Desertos - XII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


Avesso aos pingos de chuva me entorno nesta pressa de chegar a seco. Dias sem fim aguardando a chegada da noite, acendendo-me por dentro do escuro. 
Apreendo-me na arte do capotamento. Do cinzento ao negro, emaranhado nas iluminadas luzes do esquecimento. Como rio vertendo-me nas frestas, entre o inicio e o fim, esta ténue linha onde me exerço.
Funâmbulo. 
Funâmbulo me estico os dias para além do implausibilidade do regresso.
Dentro de mim, agora me oiço. Vozes. Vozes ecoando no estrondo do rasgo. Mais ou menos temperadas, cindidas no avesso da carne.  
Não existe nenhuma cura mediante a sedação. Sim, não há muros que separem o inseparável, sequer pregos que durem a eternidade; que eternamente funcionem os mecanismos que nos dormem. 
Dentro em pouco acordaremos. 
Irromperemos o sonho da transmutação, para que na transmutação nos sejamos outros. 
 Entretanto.
Apreendo lições Antigas, canções ecoadas no torpor dos Tempos. Somente então serei digno de entoar o regresso a esta casa.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho