XXVII
Rui Carvalho: Esse discurso das diferenças é um discurso legitimo, contudo tudo nos é tecnicamente dado de uma forma cada vez mais mimética. Como exercer a diferença num espaço onde reina o mimetismo?
Void: O humano é cada vez mais um exercício de mimetismo. Vivemos soterrados numa vertiginosa sucessão de factos. Nós mesmos nos tornámos meros factos. Cada vez mais a realidade é vivida de um modo factual e cada vez menos de um modo vivencial. O facto da realidade ser um advento cada vez mais factual lança-nos no amorfismo. A imensa maioria dos humanos são seres factuais e amorfos. Exercemo-nos como uma sucessão de factos. Somos diluídos na realidade dos factos de uma forma vertiginosa, a uma velocidade estonteante. O facto de sermos lançados no estonteamento impede-nos de visar a realidade de um modo vivencial. O percrustar vivencial da realidade mostra-nos a realidade no modo de montanha russa. É o medo que nos faz escusar à vivência da montanha russa. Ao recusarmos a montanha russa é como se nos deixássemos ficar à superfície das coisas. É pois na superfície das coisas que nos deixamos deslizar na factualidade. Esse deslizamento na factualidade impede-nos permanecer, ficar perante o que nos é mostrado. Vivemos nossas vidas de um modo aproblemático, como se todas as respostas já nos estivessem dadas à partida. Quando nos deparamos com uma situação problemática ou aporética socorremo-nos da sebenta dos outros. A sebenta dos outros é a nossa muleta. Essa sebenta dos outros é construída pelos meios de comunicação. A muleta dos meios de comunicação gere as nossas vidas. O nosso amorfismo é responsável por que tal aconteça. Os meios de comunicação formatam a nossa visão do mundo. Somos pululados pela miriade de comentadores comentando factos, resolvendo-nos as vidas. É impressionante o encicplopedismo de quem nada sabe acerca de tudo, que tudo sabe acerca de nada. É nesse meio que grassa a intensa necessidade de entorpecimento. Entorpecidos, deixamo-nos conduzir na extensa planície dos factos, dos factos que se sucedem. Ao acompanharmos a vertiginosa sucessão de factos tornamo-nos nós mesmos realidades meramente factuais.
A diferença advém, precisamente, de uma recusa a habitar a vertigem. A diferença estabelece-se na necessidade de contemplação.