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segunda-feira, 11 de junho de 2018

Útero - XX - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Basta alterar as cores do mundo para que o mundo pareça ser outro. No entanto, tudo se mantém o mesmo. Imitamos a vida longe da lava e longe da vida tornamo-nos gastos. 
As casas envolvem-nos os gestos. Nós envolvemo-nos nas pretensas certezas. Assim vamos camuflando os dias. Camuflados nos dias avançamos noite adentro. Cingimos a pele com a roupa adequada buscando o centro das coisas. 
Esta sede de alcançar o brilho. 
Confundimos a felicidade com o bem estar. Talvez seja sensato. A felicidade é um tempo fugaz, foge-nos das mãos como a areia da praia. Sejamos pois comedidos. Queiramos um brilho que não brilhe muito. Contudo, "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa". Um pouco de método é o que se exige. 
Os lugares construídos pelos homens não são lugares felizes. O nosso bem estar colide com o bem estar dos outros e para que tudo batesse certo seria necessário ilidirmos de nós a ganância. Ou seja, a soma dos corpos é idêntica à soma dos mundos. Cada corpo é um lugar próprio e intransmissível.
São estes os factos que nos condicionam. 
Nem felizes nem infelizes, vamos divergindo até à hecatombe. 

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 3 de junho de 2018

Desertos - XLIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Digamos que os sonhos de apagam, que se vão tornando cada vez mais ténues. No início dão-se com uma força tal que nos empurram à acção. Depois, é a acção que nos empurra. Deixamo-nos ficar colados ao mundo e colados ao mundo tornamo-nos horizontais. A verticalidade dilui-se com o tempo. Damos por nós sendo quem jamais quisemos ser. 
O mundo ocorre-nos como uma beleza hostil. Nós ocorremos com o mundo. Somos qualquer coisa transcorrendo entre a bestialidade e o divino. 
E.
Há imagens que nos espelham melhor que o nosso olhar no espelho. O abandono. Quando a manhã ocorre o mundo torna-se tarde. Como rios desaguando as encostas de uma qualquer lixeira, somos levados na enxurrada. O primeiro a chegar sente-se mais alto, mais próximo da afirmação. Aí chegados, perdemo-nos na obesidade mórbida.  
Deixamos para trás as incertezas. 
Deveríamos manter sempre uma distância segura relativamente à estupidez. Até porque, qualquer travagem do veiculo da frente nos trará a colisão. Subtraímo-nos ao que poderíamos ter sido e esse é o pior retrocesso. Rondamos o abismo cheios de certezas até cairmos de bruços sobre o nosso próprio vomitado.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho


Útero - XIX - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Entre uma casa e outra há o ofício do barro. Como um espelho, o húmus germinando até à ausência do solo. Nas cavernas descobrimos abrigo. Depois, desde a lonjura do verbo até ao lugar onde existimos, distamos alguns milímetros do fogo. 
A determinada altura há uma cisão. 
Nas sombras alcançamos a parecença das imagens. Como tochas acesas sinalizando a luz, nelas ardemos até à incompreensão. 
Tocadas em tons dóricos as escalas do fogo indiciam-me o caminho, os lugares inóspitos onde os homens não passam. Sigo as imagens, o intacto silêncio das pedras. Será aí que transpareceremos. 
É  necessário chafurdarmos no lodo para sabermos de onde provimos. 
Aguardemos pois a água e a lama, todos os lugares desabitados. Transcorrendo o rio Jordão,  desde o lugar onde se desce até ao desaguar no mar morto, há um mundo de permeio. 
Entre a água e a lama ocorrerá a vida, a tentação da queda, tão grande quanto a vontade de nela sucumbirmos. 
Que o desejo cresça tanto que nos tornemos Dioniso - as formas do vinho, o furor da paixão.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho