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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - XXI

Entrevista a Sebastien Void

XXI

Rui Carvalho: a encruzilhada é, então, o sentido de nossas vidas. Na encruzilhada somos decifradores de escolhas e escolhendo somos responsabilizados pelas escolhas que fazemos. Somos a responsabilidade de nos sermos. É isso?


Void: sim, somos habitantes de encruzilhadas, somos aqueles que na encruzilhada se habitam. Ao habitar encruzilhadas encruzilhamo-nos nas escolhas que fazemos. Somos fios que se desenrolam, desde um antes até um depois de nós mesmos. Somos perdidos, entre o antes e o depois. Os vários momentos entre o antes e o depois constituem-se-nos como bolhas de sentido. Somos o respirar dessas mesmas bolhas. Após terem sido respiradas as bolhas de sentido evaporam. Há quem se mantenha para sempre respirando a mesma bolha, até à rarefação do oxigénio. Há quem se sobreviva sem escolha. Há quem seja escolhido pelo mundo. Quase todos somos escolhidos pelo mundo. Raramente escolhemos o que somos ou que caminho faremos. Fazer caminho. Fazer caminho é a mais difícil das tarefas, a mais difícil das artes. A escolha dilacera. A escolha implica o dilaceramento nas encruzilhadas. Há quem jamais sangre. Há quem faça sangrar. Há também quem sangre muito. Há quem seja em ferida de tanto sangrar. Há quem se perca na exaustão das bolhas de sentido. Há também quem se respire nas bolhas certas. Esse é o sentido. Respirar as bolhas certas. Nada de ambições humanamente instigáveis. Carros, casas e empregos inomináveis. Respirar a beleza é a escolha certa. Deveríamos singrar o caminho do belo. A cada instante. Deveríamos ser a arder entre as chamas. Emissores de sinais, ardendo até ao limite do possível. Responsáveis, sim. Somos responsáveis pelo caos em redor. Somos responsáveis por não tornarmos o mundo o melhor possível. Pelo contrário, fazemos do mundo o lugar da mais tacanha mediocridade. Tacanhos e medíocres, habitamos o lugar do rancor. É essa a nossa escolha. Responsáveis, sim. Somos responsáveis pelo que somos.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Desertos - IV - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


      
 Nasço palavras habitando-me para que nelas me julgue menos só. Contudo, jamais serei a salvo. Sou atolado nesta pele até aos ossos e a mentira é uma ferida que por dentro me mina.
Por dentro. 
Sou as feridas que me sangram. 
Nunca fui são, verdadeiramente nunca o fui, mesmo quando um dia acreditei que os passos me conduziriam a lugar algum. 
Fui prestes na encarnação de personagens que não sou. Habitei as casas junto aos homens e nelas construí um império de derrotas. 
Um dia acordarei com todas as coisas vibrando. Será esse o sinal que não poderei mais vibrar. 
Somos derrotados. 
Somos derrotados pela natureza das coisas. Um dia acordarei com a vontade derrotada. É inevitável. É inevitável que assim seja, que os camiões cheguem para fazer a mudança. Levarão tudo o que fui. Levarão todos os livros tragados na fúria, todas as jovens mulheres que me perdi. 
Um dia será noite. Um dia será noite e a noite ficará. A noite será incólume e sem estrelas. Eu estarei só. Estarei só e serei doente, uma doentia mortalha por todos deixada ao abandono. Não restarão preces que mais não sejam estes ramos apontando ao céu. Um último acto de coragem. Sulcarei a terra até que os vendavais me sinalizem, e, então, perante os vendavais me erguerei o dom do abandono.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

Chasing paterns series, n.º 2 - by Steven Space


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Desertos - III - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


Água. Somos água escorrendo. Náufragos corpos buscando o estridente deserto, uma qualquer mágoa afirmando todo este silêncio. De paradeiro incerto, sofridamente nos erigimos de encontro à estranheza do mundo. 
Tempos atrás habitámos distantes lugares, longínquas terras vividas em contramão. Antes. Antes houveram promessas e nas promessas ferozmente nos discorremos. Fomos ferozes de encontro às cidades, ferozmente escorrendo por fora do leito dos rios. 
Somos agora de regresso a casa. No regresso nos reerguemos as decepadas cabeças firmadas no sonho. Somos de novo a afirmativa presença. E afirmativamente presentes nos apressamos a escavação, o  célere augúrio das coisas vindouras. 
Antes. Antes houveram poetas cantando o declínio. 
Agora somos incertos. 
Incertas certezas desesperando a vicissitude. 
Aguardamos declínios. Agora. Agora aguardamos a farta sede de augúrios. Somos agora desertos. Desertos náufragos abundando entre as cores, longinquamente reflexos na mais íngreme estranheza. 
Gritamos: “aqui somos!”. 
Ninguém nos ouve. Ninguém nos ouve porque ninguém há a ouvir. Náufragos. Náufragos até ao deserto. 

Aqui, desde onde nos perecemos.

Fotografia: António Caeiro;
Texto: Rui Carvalho. 




sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Desertos - II - Fotografia de António Caeiro; Texto de Rui Carvalho


  Pavimentaram-nos o chão para que não nos semeássemos. E no entanto, eis-nos: ervas daninhas crescendo. A arte floresce, onde menos se espera. Onde quer que haja sede de espírito e alguma chuva caindo, desde a imensidão do céu. Somos refletidos na imagem da terra, entre a terra e o céu. Eis-nos. Eis onde nos espelhamos. Por entre a triste cor da alguma chuva caindo. 
Aguardaremos o dilúvio. Aqui aguardaremos que o céu nos caia, para que o céu caído seu infeliz amor reencontre. 
Gaia e Úrano suspensos na ira de Cronos, o Deus da decepação. 
Aqui ouvimos a chuva que ainda há pouco deixou de cair. Aqui escutamos o passar do tempo, entre a chuva que vai e a chuva que vem. Aqui é a terra, prenhe de nós. Prenhe de ervas daninhas crescendo, habitando os interstícios do solo, a terra. 
Pavimentaram-nos o chão. Pavimentaram-nos o chão para que do mundo mais não esperássemos que o haver a ser. Contudo, ainda esperamos milagres. Esperamos ainda que o céu nos caia, para que no céu caído o mundo nos recomeçe. Em ânsia, aguardamos o recomeço. Ansiamos cataclismos. Ansiamos o reencontro em Gaia e Úrano. Antes ainda do Tempo urdindo a vingança.  
Libertar-nos-emos das grades que nos cercam. As grades são imagens impostas na paisagem e ervas daninhas não conhecem prisões. 
Aqui, aqui nos espelhamos. Espraiamo-nos luz acima para que a luz nos incida. Temos sede de luz, da luminosa saudade impregnada em futuro. À vileza que nos cerca contrapomos os intrépidos lugares onde nos crescemos. Somos iluminados pela estranheza do que somos. Aqui, no preciso lugar das apostas perdidas seremos a vitória dos reencontros. 

Foto: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 18 de dezembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - XX

Entrevista a Sebastien Void

XX

Rui Carvalho: a fundamentação da estrutura axiológica espiritual, no contexto em que a referes, é erigida a partir do domínio estético. Tal implica que se possa fundar uma ética a partir desse mesmo domínio. Contudo, as éticas tradicionais têm um outro tipo de fundamentação. Qual das éticas é então a Ética?

Void: tudo que é valioso é dado na implosão, no momento de implosão entre o sonho e a vigília. O momento da implosão é o lugar onde o húmus da realidade se deixa moldar pela idealidade. A paixão, o amor, a arte, a fé eclodem. A eclosão da “realidade” é dada na experimentação estética. 
O mundo é um lugar de desejo. A experimentação artística e a experimentação da fé são os locais onde mais radicalmente se dão os movimentos do amor e da paixão. A argamassa do desejo é transcrita na emanação energética da espiritualidade. É esse movimento, é a partir desse movimento que se funda toda uma Ética. As éticas tradicionais são fundamentadas em imposições, são dadas como lei. O agir desconforme, o agir em desconformidade ética é apenas uma fuga à lei. A fuga à lei não é sentida como culpa, não é vivida como remorso.  

A energia que emana da obra de arte e a energia que emana da fé são geradas na oposição do espírito à matéria. O artista, tal qual o crente, é aquele que está em luta com o mundo, com a materialidade do mundo. A matéria do mundo é a argamassa desde onde se desvela a espiritualidade. É na implosão dialéctica, na contraposição entre espirito e matéria, que o sentido ético vinga. Somente esteticamente, somente no plano estético pode o sentido ético vingar. Alicerçando-se esteticamente a Ética é vivida na plenitude da carne viva. O sentido ético toca-nos, não já como mera lei e como mera obediência à lei, mas como vivência concreta do paradoxo. No paradoxo há a exigência do salto, e o salto é dado na escolha de uma das múltiplas direcções visíveis. O paradoxo é o cerne da vida, e o cerne da vida joga-se na escolha, na constante necessidade de decisão perante as encruzilhadas. Somos seres que se jogam. Somos seres que se jogam a cada encruzilhada. As encruzilhadas são constantes. A encruzilhada é o lugar de nossas vidas.    

sábado, 17 de dezembro de 2016

Desertos - I - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


 Aqui havia cortinas abrindo-nos a noite, para que toda a vida pudesse acontecer-nos. Aqui havia lugares e nos lugares nos sentávamos ainda prenhes de clareza. Todos os lugares eram alagados pelos rios jorrando em catadupa, pelo riso iluminado das jovens mulheres ainda em flor. A noite surgia florindo todos os resquícios do mundo e a noite era então a mais clara certeza de sermos um sonho vivido. 
Aqui.
Aqui havia cortinas e as cortinas se nos abriam. Nós abria-mo-nos com as cortinas, fingindo-nos mortos para a rotina. A rotina era a secura dos solos. Nós ainda vicejávamos. Entoávamos canções numa linguagem distante. E nas canções entoadas distávamos o amor por milímetros. Tudo falhou. Tudo falhou como tudo sempre falha. Tudo que quisemos foi desejado em demasia e a demasia entornou-nos borda fora. 
  Extravasados de nós somos agora esta angústia. Esta angústia de casas desérticas minando-nos até aos ossos. 
Agora, sim, agora. 
Agora somos casas desérticas, desabitados no desamor. 
O escuro não chega. Agora o escuro não nos chega. Tornámo-nos brancos e ressequidos como a branca cal das paredes que nos cercam. Nas paredes nos edificámos até à brancura da pele. Imiscuímo-nos na feitura das casas para que aí nos pregássemos nossa fundação. Contudo, fundimo-nos com a paisagem, somos aqueles que com a paisagem se fundem. A paisagem definha, como definham todas as paisagens tocadas pelos homens. Agora somos secos. Só teias de aranha nos habitam. 
É isto. 

É nisto que nos tornámos: corações empedernidos nas teias.   

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Love songs to no one else - XII

XII

Foste-me o inesperado canto das sereias mudando o curso de uma vida ou o encantamento das serpentes no início do pecado. Todos os antigos provérbios agora relembrados. 
O mundo pesa, sabes, o mundo pesa. 
Houve um tempo de sortilégios, houve o bálsamo de teus olhos. Parar o tempo. Parar o tempo e ficar. Eu consigo. Eu consigo parar a tempo. Ficar. Consigo ficar, eu sei. Ficar não é difícil quando ficar é estar contigo. Sem olhar o redor. Tu e eu. A unidade. A unidade não é ser um, a unidade é sermos dois. O amor. O amor é sermos dois. 
O mundo não é uno, dir-me-ás. O mundo é a multiplicidade, o mundo é a multiplicidade fluindo. Tudo flui, sem retorno. Eu sei. Conheço o peso do mundo, conheço o arrastar da tristeza. Conheço meus ombros calejados. Atlas. Atlas, aquele cujos ombros suportam o peso do mundo. Tenho forças para mais, acredita. Fluirei o mundo em meus ombros para que em nós nada flua. Nada. Nada excepto o amor fluindo. 
A reciprocidade. 
A reciprocidade é possível. 
De mãos dadas fluiremos a reciprocidade, sem resquícios de abandono. O abandono seria sermos iguais ao mundo, deixarmo-nos ser os outros. Deixarmo-nos ser as vozes em rodopio. Deixarmos que as vozes nossos corpos silenciem. 
Não. 
Nós seremos longe. Seremos longe da algazarra. Seremos longe do dito e do redito, da confusão das coisas ditas. Seremos longe das coisas ditas. Seremos o que ainda há para dizer. Na constância. Seremos seguros na constância. Ininterruptos. Segregando oxigénio. Respirando oxigênio. A vida, respirada. Inspirada, expirada. Sorvida como água, tragada como fogo. Consaboreada com o mel. 
Água, Fogo, Terra, Ar. A demanda dos elementos. Seremos a demanda dos elementos. Juntos. Juntos como astros gravitando o poder da atracção. 
Yin e Yang, o universo soletrando a união das energias. A atracção dos opostos até à impossibilidade, até à impossibilidade dos lugares comuns. 

A atracção da unidade.

A unidade da atracção.



Álvaro Cunhal, s. d.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - IXX

IXX
Rui Carvalho: as brechas axiológicas são então momentos constitutivos do valor. Consegues explicar-nos melhor a noção de brecha axiológica?

Void: toda a nossa existência é dada na contraposição entre o espirito e a matéria. A realidade, chamemos-lhe assim, é uma entidade dialéctica. Sendo que o principal foco dialéctico da realidade é dado justamente na contraposição entre o espirito e a matéria, entre uma realidade material e uma realidade espiritual. Acontece que a materialidade nos é mais auto evidente. A materialidade é o local onde constantemente nos tropeçamos. Por isso, somos desde logo acometidos por uma estruturação axiológica que se cinge à evidência material do mundo. É a partir da evidência material do mundo que estruturamos as nossas vidas. Trata-se da sobrevivência imediata. De modo a podermos sobreviver temos necessariamente que enganar ou ser enganados.  Não há outro modo. Trata-se de irmos sendo o que nos é dado ser. Somos espertos ou menos espertos. Os mais espertos enganam. Os menos espertos são enganados. Digamos que nos debatemos com duas estruturações axiológicas que são antagônicas entre si. Podemos chamar estruturação axiológica material à primeira dessas estruturações e estruturação axiológica espiritual à segunda.    
As brechas axiológicas acontecem no rasgo. O rasgo é o instante em que a realidade é rasgada, em que a realidade é irrompida pela irrealidade. O rasgo é acontecido no ínterim entre o sonho e a vigília. O instante do rasgo é o momento em que o sonhado se reúne ao vivido de tal modo que proporciona a implosão da “realidade”. O lugar onde a “realidade” implode é o lugar do vislumbre. No vislumbre, isto é, no ínterim entre o sonho e a vigília, é esse o lugar das manifestações da “realidade”. A “realidade” é a vida a acontecer. O acontecer da “realidade” é manifesto como valor. As mais profundas manifestações do valor são dadas na vivência da paixão, da arte, do amor, da fé. Esses são os primordiais acontecimentos do valor. O valor é acontecido como vida. Tudo que é valioso é acontecido no ínterim. No ínterim entre o sonhado e o vivido. Todas as experiências valiosas são entre o sonho e a vigília. Daí advêm todos os verdadeiros valores. É essa a origem axiológica do verdadeiro sentido do mundo. É aí, no concreto lugar da paixão, que se dá a estruturação axiológica espiritual. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - XVIII

XVIII
Rui Carvalho: a experimentação do toque e do contacto constituem-se como experimentações valorativas? Podemos inferir que existem duas realidades axiológicas antagónicas? Sendo que a primeira delas resulta da noção de valor transmitida e herdada pelos velhos hábitos adquiridos no nosso destino já traçado, e a segunda resulta da experimentação da inabilitabilidade e da consequente necessidade de constituição de um destino ainda a ser? 

Void: nas sociedades de consumo tudo é aceitável. Tudo é aceitável desde que preencha o principio da utilidade, desde que constitua uma mais valia para alguém. Há uma constante demanda, uma constante e intensa busca do interesse próprio. O lucro, o lucro é o valor por excelência das sociedades de consumo. O lucro é a força motriz, o centro gravitacional das sociedade de consumo. Para as economias liberais ocidentalizadas, o lucro é o valor primeiro e primacial.
Não é possível uma comunidade de pontos de vista, uma partilha de perspectivas. Cada perspectiva individual é pessoal é intransmissível. Contudo, somos soterrados numa perspectiva artificial que nos é comum. O senso comum perspectiva-nos, enforma-nos numa perspectiva determinada. No que concerne às sociedades de consumo, o senso comum é erigido com base nas noções de utilidade, de lucro e de mais valia. Todas estas categorias são categorias mensuráveis. Por conseguinte, a estrutura axiológica das sociedades de consumo é ela mesma fundada em princípios mensuráveis e quantificáveis. Somente a experimentação da inabitabilidade nos permite sair do trilho do quantitativo e do mensurável. 
Sim. Existem duas realidades axiológicas antagónicas. A primeira delas é desde logo traçada pelo nosso herdar de um destino já traçado. Quanto à segunda realidade axiológica, a mesma resulta precisamente de uma ruptura, de uma cisão que é vivenciada para com esse mesmo destino já traçado. A segunda realidade axiológica implica pois uma radical ruptura para com os velhos hábitos herdados de uma tradição pré-fabricada.      
Quando a realidade deixa de fazer sentido torna-se imperioso que possamos recuperar a irrealidade. Não se trata de anular a realidade ou fazer de conta que não vemos o redor. Trata-se de estabelecer contacto. É indispensável que o contacto se estabeleça. O espirito livre erige-se a partir do contacto. É a ausência se espirito que impede a ignição do contacto. Na ausência de espírito não há contacto de maneira a ser dada a possibilidade de existência de um espírito livre. Para existir um espírito livre e indispensável que antes de mais exista um espírito para libertar. É através da experimentação dessa mesma libertação do espirito que se erige a arqueologia de uma nova maneira de ser e de pensar. É a partir da gestação dessa mesma nova maneira de ser e de pensar que se constitui a verdadeira estrutura axiológica do mundo. A paixão, a arte, o amor e a fé são, pois, aquilo que de mais valioso se vislumbra através das indispensáveis brechas axiológicas.   

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Achado 

Semearia cisternas de mortos
dentro de vossas gargantas
esse seria meu obliquo gesto de concórdia
o sistema dir-me-ia eu estar louco
como se a loucura fosse fora do mundo
e não o próprio mundo em si
nos corpos dando à costa
sem ninguém mover-se que seja

os esqueléticos achados acham-se longe
dir-me-ão
médicos e videntes da realidade que nos é feita
eu sei
eu sei estar longe como sempre estive
contudo
quanto mais perto meu longe é que vosso sólido desdém
capicuas
vossos números se terminam e iniciam nas coisas feitas
como se não houvesse o todo ainda a fazer
e o aqui 

além se não fizesse.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Excerto de "Vácuo..." - Rui Carvalho

   Um país sitiado. Um país, sinalizado na geografia do medo, debatendo-se na impossibilidade de contraposição ao mar. Entre Espanha e o mar. Sitiados. Somos sitiados entre Espanha e o mar. Germinando na opressão. Desde o inicio. Espanha e o mar. Entre Espanha e o mar, para onde ir? Debelar-nos contra um muro ou tentarmos o augúrio dos Oceanos? 
Erguemos uma pronúncia e na pronúncia erigimos uma língua. Esse é o notável feito. O mais notável dos feitos. Não o delírio oceânico. Não a imberbe grandeza dos feitos oceânicos. Não a deriva do mundo, o inefável mito da expansão. 
A construção de uma língua cifra a grandeza de um povo. 
A batalha invisível. Vencemos a batalha invisível. Contra Espanha. Contra Espanha e contra o mundo nos batemos. A entonação. Vencemos a batalha da entonação. Na entonação erguemos uma pronúncia. Na pronúncia erigimos uma língua. A entonação, o ritmo, o acento. Somos o canto de nós mesmos. Esse é o feito. Esse é o feito a ser celebrado. Um povo que se canta. Um povo que se sabe cantar adquire lugar cativo na história do mundo. O canto é o nosso acento tónico. A língua é nossa única riqueza. Poderíamos ser enormes se nos tivéssemos sabido educar na língua que criámos. No entanto, pouco mais somos que o desprezo de nossa própria língua. Nunca paramos para escutar nosso canto. Nunca paramos para escutar nossa língua. Somos a pressa de nos sermos os outros. Somos reflexos. Reflectimo-nos em espelhos que não são nossos. Os espelhos devolvem-nos um reflexo que não é o nosso reflexo. Os espelhos onde nos miramos devolvem-nos uma visão distorcida de nós mesmos. Entre a megalomania e o amesquinhamento. Somos entre a megalomania e o amesquinhamento. Não. Não somos tão enormes quando por vezes nos fazemos. Não. Não somos tão míseros quanto nos querem fazer parecer. A língua. O nosso erro é não nos termos sabido fazer crescer com a língua, com a linguagem que nos é, com a linguagem onde nos somos. Sempre nos colocámos longe do desígnio artístico. Sempre fomos cegos de arte e de cultura. Desde sempre. Cegos fomos. Cegos somos. A cultura. A cultura é a argamassa que pode sustentar toda uma civilização. Sem cultura o mundo perece na estultícia. As migalhas. Como maltratamos as migalhas. Como maltratamos as migalhas de cultura que germinam ao contrário de tudo. A cultura germina ao contrário do mundo. A cultura é ao contrário da velocidade do mundo. A cultura radica-nos. Faz-nos centrar no que realmente importa. Longe do fogo fátuo informativo. Longe do folclore do sempre o mesmo. Connosco é sempre a mesma cantiga. Desde sempre. O fado. O nosso fado. Fazemo-nos fadados para o fado quando o fado é lá atrás. Tão lá atrás. Corridinhos e folclore não fazem crescer ninguém. As festas de aldeia. O pão e circo para o povo. Damos ao povo o que o povo quer e o povo quer o que vê. O povo é imóvel se não for movido. Somos ruminadores de pão e circo. Pão e circo é o que somos. Nada mais, nada menos.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Twighlight series, n.º 6 - by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - XVII

XVII

Rui Carvalho: quando referes o toque e o contacto estás a referir-te a duas categorias existenciais, certo? Qual a distinção entre ambas?


Void: certo, o toque e o contacto são categorias existenciais. São, contudo, duas categorias existenciais complementares entre si. O contacto está directamente correlacionado com o momento de instalação da perplexidade. A perda de pé. A perda de pé coloca-nos perante a perplexidade.  Perplexos, perplexos e em perda de pé somos obrigados a nos redireccionarmos. O nosso destino deixa de ser - o destino traçado, para passar a ser - o destino a traçar. O facto de termos um destino a traçar responsabiliza-nos, torna-nos contemporâneos de nós mesmos. O ser contemporâneo de nós mesmos conduz-nos à experimentação da inabitabilidade. Somos seres de hábitos. Somos habitados pelos nossos próprios hábitos. Os hábitos são-nos socialmente incutidos. Contudo, a experiência da contemporaneidade desabita-nos de velhos hábitos. Ao sermos desabitados de velhos hábitos tornamo-nos sem abrigo. Ser contemporâneo de si mesmo é ser sem abrigo. O sem abrigo é aquele que ainda procura onde se abrigar. Todos os outros se habitam nos hábitos de todos os outros. O sem abrigo procura ainda o seu próprio hábito. O sem abrigo procura a sua habitação. A habitação do sem abrigo é longe da habitual habitação onde todos os outros se habitam. Na procura de habitação somos tocados pelo mundo. Emitimos sons. Emitimos sinais, símbolos. Somos tocados. O ser tocado torna-nos seres musicais. Somos inscritos na musicalidade do mundo. Emitimos sons, é isso. Somos emissores. Emissores e receptores de sons, de símbolos. Na procura de habitação vamos treinando a nossa caixa de ressonância. A cada passo dado somos mais aptos ao toque do mundo. Quando mais andamos mais amplificamos os sinais recebidos. Transfiguramos os sinais em sentido. Somos transfigurantes de sons, de sinais. Cada sentido traz uma nova direcção que se nos abre. Em perspectiva. Somos em perspectiva. Somos perspectivas que se espraiam. Como tapetes de areia. Desenhamos formas e incutimo-nos nas formas que desenhamos. Escrevemos pautas e incrustamo-nos nas pautas que desenhamos. A arte, a arte é-nos entre o contacto e o toque do mundo. 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Summer series, n.º 5 - by Steven Space


Excerto de "Visitação" - Rui Carvalho

O fim do mundo nunca é o fim do mundo. O fim do mundo é o mundo a tornar-se outro. O mundo roda, em círculos, sem princípio nem fim. Sem princípio nem fim, o Universo circula. São nossos olhos que criam o princípio e o fim das coisas. O rápido movimento do olhar. O rápido movimento do olhar cria-nos o espaço e o tempo. O espaço no tempo. O tempo no espaço. Sem espaço e tempo o mundo não fluiria. Sem espaço e tempo seriamos estatuescos. 
O ser outro do mundo é o que há de real. Constante. A constante mudança das coisas nos lugares. A constante mudança dos lugares em nós. A realidade. A realidade é em devir. Somos em devir. Estátuas vertidas em areia. 
Não olhar para trás. 
Nunca olhar para trás. 
Esse é o segredo. Devemos ser contrários à esposa de Lot. Sem olhar para trás. Devemos seguir em frente.
A vida, o mundo. 
A vida é Sodoma, O mundo é Sodoma e Gomorra. A vida não é o céu. A vida não é o inabitado céu dos anjos.  
Tal qual o mundo, a paixão circula, sem princípio nem fim. É nosso olhar que cria o princípio e o fim das coisas. A paixão não acaba. A paixão não acaba nunca. A paixão circula, tal qual o mundo. A realidade da paixão é circular. Circular e secular. A paixão são os corpos das jovens mulheres, das jovens em flor, das doces mulheres desfloradas. A paixão é subir o impossível em nós até ao limite de nós mesmos. A paixão. A paixão é o desejo de deus. A paixão é o desejo de deus a partir dos corpos.
Havia em nós o desejo de partir, de vislumbrar a remota origem de onde viéramos. Diria que sempre falámos de estradas, de caminhos que nos levariam a outros lugares. Ambos sabíamos que partiríamos. Esse era nosso desígnio. Nosso desígnio era partir. Partiríamos. Mais tarde ou mais cedo. Mais tarde ou mais cedo cruzaríamos o horizonte. Cruzaríamos o horizonte na senda da origem, da origem do que éramos.
Diria que somos ténues linhas cruzando o horizonte. Sem deixar rasto. Sem fazermos história. A maioria de nós. Ténues linhas. Eis o que somos. Era isso que não queríamos. Foi isso que não quisemos. Ser ténues linhas. Foi isso. Foi isso que nos separou. A possibilidade de não sermos mais que ténues linhas, dando filhos para a morte.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Love Songs to no one else - IX


IX

Teu cheiro. Teu cheiro irrompe-me. Entre os milénios. Entre pingos de corpos, diluídos na azáfama. Na azáfama me és única. A única surpresa. A única possibilidade de sentido é dada em teu cheiro. Exala-me. Exala-me as fragrâncias em teu corpo, para que em teu corpo me suem os milénios. A atracção dos milénios. 
Como levar-te? Como levar-te longe? Como te levar? 
Como te levar o sol em minhas mãos? 
Como levar-te o truque da surpresa? 
A multitude. Como levar-te a multitude? A multitude das estrelas. Cadentes. As estrelas cadentes caindo perto de teu cheiro. Perto dos lugares onde te aguardo a nudez. Terrenos. Terrenos e reflexos, os corpos ditados nas leis da atracção. O celestial magnetismo da estranheza deflagrando-me as flores, em teu corpo. 
Teu cheiro. Teu cheiro alcança-me o epicentro do desejo. A terra toda tremendo-me os pontos cardeais. Movidos, meus pés. Céleres. Céleres até ti. Céleres pés dançando-me os astros. Até que me vagues. 
Vaga-me. Vaga-me a transmutação da matéria. A volatilização dos corpos fixando o sólido desejo de ti. Acresce-me as fragrâncias. Às fragrâncias acresce-me os lugares. Todos os lugares onde o todo te incorpora. 
Dançante. A matéria dançante compondo-me. A dança dos astros. 
Dança-me. 
Dança-me o início. Dança-me o início e o fim, pois tudo é em ti desde o início. As coisas, os lugares são em ti. Desde o início. Por dentro da abstracção. Por dentro da abstracção há a realidade de teu cheiro. A música das esferas singrando o apuramento do olfato. Irreal. Irrompendo. A irrealidade rompendo as águas do mundo, até ao refluxo das cores. Todas as cores brotando do caos. Cores vivas vivendo as marés. Indo e vindo em teu corpo. Tudo de novo. De novo. A novidade do instante. O desejo deflagrando-nos por dentro das horas. Por dentro do fluxo dos corpos. As marés vivas. As marés vivas avivando em teu cheiro. O poder divinatório dos oceanos em nossas mãos. Frágeis mãos ascendendo-nos os sexos, afagando-nos os contornos. Até à ilimitação. 
Ilimita-me, 
Ilimita-me o querer. Ilimita-me o querer até que só a ti te queira. Agora. Para sempre. O instante em que o mundo se nos funde. Mãos, dedos, derivando na procura do húmus. Longe. Bem longe da oblonga matéria dos dias. Longe e tão perto. Tão perto. Tão mais perto do fogo. Tão mais perto dos lugares onde o todo em nós se funde. A irrealidade crivada nas chamas. Ardendo. O amor ardendo. Tão perto. Tão perto quanto a proximidade nos pode ser próxima. Estradas, carros, casas. Ardendo. Os caminhos. Ardendo. Tudo ardendo. Tudo ardendo, porque tudo é aqui. Tudo ardendo porque tudo é em ti. Aqui e agora. Não mais longe que isto. 

Aqui e agora. 

O primeiro beijo como se o último fosse. 
O primeiro rio correndo. 
A primeira estória contada. 
O primeiro ninho caindo. 
O primeiro voo dos pássaros. 

Os primitivos gestos singrando, por fora da mitologia. 

O desejo. 
O vento soprando a direcção de teu cheiro.
O desejo.

Aqui e agora.
Aqui é agora. 
Agora é aqui. 

Agora é em ti.

Álvaro Cunhal. s. d.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Excerto de "Vácuo..." - Rui Carvalho

A adversidade. A adversidade é-nos relatada na experimentação do corpo. A experiência do corpo invoca-nos a materialidade do mundo. Enquanto coisa extensa, o mundo oferece-nos resistência. Somos seres de desejo, e a nossa existência enquanto seres de desejo está circunscrita, em primeira instância, pelo plano da materialidade. O mundo é uma realidade extensa. Extensa e espessa. Tal qual o humano. Somos vibrados na conquista e no seu correlato, a perda. A espessura do mundo é-nos relatada na experimentação da perda. Somos como crianças a perder objectos. Enquanto somos crianças a perder objectos o mundo não é ainda matéria. O mundo não é ainda material. O mundo é um lugar de recreio. 
Estamos no jardim de infância. 
Na infância já temos adquirida a noção de posse. No entanto, ainda não respiramos a vicissitude. Na infância somos defronte uma miriade de jogos. Jogamos. Na infância ainda jogamos. Somos os donos do jogo. Somos miúdos. Enquanto somos miúdos somos donos das muitas bolas. São milhentas as possibilidades. As bolas furam. As bolas furam, mas há ainda mais bolas. Bolas e mais bolas. As bolas furam e ficamos ressentidos com aquele que as furou. Os berlindes são perdidos ou roubados. Os berlindes são perdidos ou roubados por quem tem o abafador. O nosso ressentimento é para com o dono do abafador. 
“Nunca mais sou teu amigo!”. Está dito. 
Está dito, mas amanhã tudo é outra coisa. 
As crianças renascem. As crianças renascem com as manhãs. 
Com o tempo perdemos o dom de renascer com as manhãs. Jamais renascemos. Jamais renasceremos. Somos a perder. Tudo perdemos. A espessura do mundo abate-se sobre as nossas existências. Somos soterrados no interior de uma série infinita de impossibilidades. Já não há manhãs. A partir de determinada altura as manhãs deixam de existir. Somos os dias, antes ainda da descoberta da noite. Os dias são os dias. Os dias são os doze trabalhos de Héracles. Temos de viver os doze trabalhos. Os doze trabalhos de Héracles. Os doze trabalhos de Héracles são sobrevindos. Quando os doze trabalhos de Héracles são sobrevindos estamos perante o vencedor. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Winter series, n.º 3 - by Steven Space


Love songs to no one else - X

X

A confiança é uma questão atroz. Confiar. Como confiar? 
As borboletas voam. A confiança é um voo de borboleta. 
Confiar. Como confiar no voo das borboletas? O voo da borboletas é efémero. São efémeras, as borboletas. Como a respiração. Também a respiração é efémera. Tal qual os dias. Efémeros, os dias. No entanto, somos a respirar. Respiramos os dias. Somos seres de respiração. Ofegantes. Somos a respirar a nauseabunda atmosfera. Somos a respirar. Respiramos o voo. Somos o voo das borboletas. Efémeros. Respiramos com as borboletas. Também as borboletas respiram? Julgo sermos entre as borboletas. A respirar. A necessidade de respiração. Respirar. Um segundo que seja. Longe da putrefacta atmosfera. Eu respiro. Sou a respirar. Junto com as borboletas. Todas as cores do arco íris. Sou a soma dos segundos. Sou a soma dos segundos nas cores. Eu respiro. Espero o pousar das borboletas. No meu ombro. Frágeis. As borboletas. As borboletas são tão frágeis. Como respirar-te? Como respirar? Como respirar o mundo? Como respirar o mundo até ao respirar das borboletas? Como confiar o mundo se o mundo é atroz? As borboletas respiram. Sigo o respirar das borboletas. Como respirar-te? Como respirar-te, a ti que te retrais? Mil e uma noites. Mil e uma noites entre os astros, Sherazade. Respirando. Os astros são seguidos, na espera. Na espera te espero. Mil e uma noites. Nenhuma delas igual. Nenhuma noite repetida. Só os dias se repetem. As noites são no acontecer dos presságios.  
Eis-nos!
Eis-me! 
O nocturno esforço. Sou na espera. A esperar. Divago-me na espera. Sou o nocturno respirar  das noites. Eis-me. A respirar. Nocturno. Noctivago. Na noite as luzes se acendem. Eu me acendo. Fósforos. Somos fósforos acendendo cigarros. Na atmosfera. Entre os dias. Dia a dia.  Os dias são supérfluos. Os dias são vagos. Tão vagos quanto a plenitude do desastre. Eu. Desastroso. Eu, que sou desastroso. Espraio-me no silêncio. O silêncio liquefeito, trazendo-me as noites. Mil e uma noites. O néctar de teu corpo vertendo em meus lábios. A doçura das noites, em ti. Soletra-me o amor Sherazade. Conta-me a infindável história dos teus dias, para que teus dias me sejam. Não mais desposarei outra mulher que não tu. Tu, que me segredas o infindável lamento. Doma-me. Doma Shariar, o rei enfurecido. Atemoriza-me a maldição das noites sem ti. Por nenhuma outra mulher te trocarei, Sherazade. Qualquer que seja. Tocarei o fogo. Em teu corpo tocarei o fogo, até minhas mãos serem sinalizadas. Ouro e diamantes não me demovem. Ouro e diamantes não me demovem quando todo o ouro me és. Em teu corpo. Em teu corpo subo as escarpas até minhas mãos. Junto a teu corpo me ato o chão. Teu corpo ato para que não mais planes o voo. O voo das borboletas. Poisa em meu ombro, Sherazade. Pousa meu ombro e sussurra-me o esplendor das noites persas. Perene. Serei perene em meu amor por ti.

Álvaro Cunhal, s. d.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Aqui era a puberdade.

Aqui era a puberdade,
o breve lugar 
                      onde as ruas desertas dos subúrbios 
                      nos irromperiam os domingos à tarde,

onde todo o desejo seria visceral,
visceralmente transcrito na musicalidade
                                                                   onde nos esperávamos.

Aqui,
         aqui era o lugar,
                                     o breve lugar onde imunes aos dias nos julgámos.

A primeira ejaculaçäo,
                                     o primeiro amor precoce
                                     aqui aconteceu.

Aqui eram as fundamentais mudanças.
                                                              
O crescimento,
                         o inevitável crescimento
                         aqui se deu.

Repentinamente
                             algo mudou,
                                                 repentinamente o vazio se fez,
                                                 e no vazio nos tornámos outros.

Pai, porque me abandonaste? 

                                                   Porque me embriagaste 
                                                   no gáudio
                                                                    das breves batalhas vencidas
                                                                    e depois abandonaste meu corpo?

Porque me deixaste só
                                      aguardando as lanças, 
                                      esperando a carnificina?

Porque me expulsaste dos lugares paradisíacos 
                                                                              onde me habitava na novidade?

Porque não me permitiste vencer
                                                       a guerra contra o corpo?
                                        
Jesus, 

           Teu filho


                           sucumbindo na derrota!