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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Sendo o horizonte curvilíneo, torna-se-nos impossível visar o que quer que seja para lá de nós mesmos. Por conseguinte, nunca sabemos o que nos espera do outro lado do mundo. Entre uma vida e outra vida há sempre um espaço de permeio. A magia ocorre sempre que esse espaço se preenche. Somos colados ao enigma e colados no enigma transgredimos nossos corpos. 
Com a alma sobre os ombros, transcorro o horizonte do possível. Às costas carrego os continentes, a possibilidade dos oceanos; uma ponte rudimentar predispondo a interligação. Somos breves ilhas de sentido. Ainda assim, há algumas vozes que nos ligam, um qualquer breve e intenso olhar, qualquer coisa outra que não sabemos dizer ainda. Uma luz, é isso. Uma luz conduzindo-nos por entre as trevas. 
Entre Ícaro, sobrevoando o labirinto, e Dédalo, aguardando a possibilidade do voo, há uma invisível mão que me fixa. Algo que me escreve até às cinzas.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Útero - XVIII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



A cal das paredes oculta uma terrifica verdade - Antígona - emparedada entre o amor e o sacrifício. 
Contudo, nada de preocupações. Sejamos cegos para o visível. Vejamos apenas a superficialidade das coisas. Talvez desse modo fiquemos a salvo do temor. 
Ainda assim, os cigarros fumados revelam-nos um tique neurótico.
Ah, mas deve haver qualquer coisa. Deve existir qualquer coisa dentro das paredes e é essa qualquer outra coisa que nos assusta. 
Restar. É esse o exacto e terno verbo que nos define. Somos a restar. Há gente que se resta, que dura séculos, milénios. Há gente que se gasta no perpetuar da sua infância. 
E.
De qualquer modo, haverá mulheres bonitas inalando o meu cheiro e só isso poderá já justificar uma vida; e uma morte também.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho




domingo, 11 de fevereiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXX - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Há planos que nos fixam, longas superfícies prolongando-nos para além da pele. Neles se inscreve o que precisa ser feito para que o mundo ecluda. Ainda assim, deixamo-nos permanecer.  Permanecemos de olhos vendados e de olhos vendados atingimos o epicentro da cegueira. Somos soterrados pela imediatez em nossos olhos e depois de soterrados já não há nada a fazer. Nada a não ser ficarmos presos entre os atavismos e as falsas promessas. O quotidiano, deixamos que o quotidiano nos conduza na rotina e na rotina nos tornamos esta contínua razia do tédio. 
Seria suposto sermos entre o peso do mundo e a leveza da alma. Mas entre o peso e a leveza somos dados no que nos é mais à mão. Exercemo-nos nas escolhas e as nossas escolhas conduzem-nos ao soterramento. Seguimos atreitos ao peso das coisas pequenas e atreitos nesse peso jamais nos fixamos na leveza. 
Somos esquecidos do sumo dos dias, que da vida somente importa reter aquilo que nos atinge o coração, a leve brisa dos momentos que nos tornam literatura.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Sobre toda a escuridão - XIV - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



A vitória da luz sobre a escuridão é uma ambição que nos dura desde sempre. A invencibilidade do fogo, esse ardil de Prometeu. Após adquirimos o poder do fogo julgámo-nos invencíveis. Desejamos que a realidade brilhe, deve ser isso. Desejamos tanto que a realidade se cinja ao fenómeno do brilho que tudo parece brilhar. Somos contudo idênticos à linha do equador; e isso significa que em nós não há solstícios. Doze horas de luz e doze horas de escuridão - eis tudo o que somos.
Sim, todas as nossas vitórias se fundam em meras ilusões. Tendemos para olhar a realidade tal qual pretendíamos que ela fosse. É aí que reside a nossa ilusão.

Doze horas de luz e doze horas de escuridão. 

Em nós, em nós não há solstícios.


Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXIX - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Breves estilhaços de uma qualquer explosão, somos dados com a matéria do mundo. Ardemos até ao arrefecimento, e depois arrefecemos muito; tanto que nossos corpos apenas se adequam ao frio. São imensas as rochas gravitando a nossa pele, e também nós gravitamos como os rochedos. 
Cumprimos a lei da atracção. 
Quase sempre somos chamados pelas pequenas coisas. 
Como um enxame de moscas, somos facilmente atraídos para a pequenez do mundo. Em redor da pequenez formamos então grandes multidões. 
Uma multidão forma-se por dois motivos fundamentais: ou porque estamos já tão cegos que não discernimos um caminho que valha a pena seguir; ou porque há uma qualquer chama que arde e nós somos chamados por ela. 
De qualquer modo, é fundamental que saibamos discernir entre a ardência e o fogo fátuo. 
Como poderá existir vida após a morte se não existir sequer vida durante a vida?

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho