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terça-feira, 30 de maio de 2017

Desertos - XXXV - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Os anos restam-nos desde a primeira vez e quando soar a hora da partida nada mais haverá que partilhar. Seremos qualquer coisa insidiosa. Qualquer coisa esboroando-se rente à simplicidade, algum pão acompanhando um vinho barato. Sobre a mesa jazem copos acicatando os corpos. Algumas cadeiras vagas, nada que possa já resgatar-nos ao cansaço.
Este é o intenso lugar onde nossos caminhos se bifurcam.
O céu como uma pintura de William Turner, um breve estudo sobre a cor e a luz. Poderíamos ter ficado na contemplação deste céu sobre Lisboa, teimando que só a arte nos pode salvar as vidas. 
Há contudo vozes que nos chamam, uma ponte unindo ambas as margens. É essa ponte que nos grita a necessidade de partirmos. Arranjamos então uma desculpa e assim corremos céleres rumo à infelicidade. 
Esta tenebrosa ânsia, a procura de um sentido onde ele não se faz. Percorreríamos linhas rectas, treinaríamos alguns exercícios de geometria. Contudo, o auge é sempre algures, entre o início e o fim. A acme. A partir daqui já não é possível o retrocesso e a excepção é um longo caminho, sempre em frente. 
Não estamos adequados a viver o absurdo. Esse é o anátema que nos tropeça. Deixamos que a trama da razão nos erija o mundo e nada é mais longe que esta estúpida procura pela verdade.

Os dias são longos como gelo e as horas o limite da corrida.  

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 29 de maio de 2017

Breve curso de introdução à economia Grega - III

Agamemnon 


Descera célere as colinas e célere embarcara o mar inóspito.
Loucamente buscava Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, meu irmão.
Loucamente buscava um amor perdido.
Educado na honra e na coragem, as mais nobres das virtudes
assim deixara meu amor verter-se noutros braços.
Contudo, tudo em mim se precipitara aquando do rapto perpetrado por Páris.
O saque de Esparta usurpara-me Helena, minha alma,
e assim me encontrara só, perante a adversidade do mundo. 
Perante a adversidade do mundo me era dado teu amor sobreposto, 
Helena, a quem por dever renunciara.
Corajoso e honrado na renúncia, corajoso e honrado voltaria a ser,
agora que minha humanidade me era devolvida.
Agora que me deparava com a virtude do ódio
agora que em mim odiava o outro de mim, 
o outro de mim que de Helena se havia alheado.
Agamemnon, o alheado de si havia retornado a si,
o meu amor implodindo aproximava-me da alteridade.
A chacina dos troianos, o resgate de Helena 
seria esse o meu último desígnio.

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 28 de maio de 2017

Desertos - XXXIV - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Cimento e ferro forjado, nada que impeça a força das águas deglutindo aquele que jamais fui. 
A orgânica matéria suplanta em tudo as misturas. Sim, os materiais jamais suplantarão o húmus do mundo. Para mais, há a certeza de também nós sermos dados à corrosão. 
Conto até cinco, inspiro - expiro. 
Seja como for, tudo é dióxido de carbono, e, todos morreremos de asfixia. 
Conto até cinco. Reverto a contagem. Descolo-me dos dias como animal ao abandono. 
Ainda assim, educo-me o desejo. 
Algo como descentrar-me toda a ambição. Nada ambicionar excepto: um percurso ao contrário, isso mesmo, da morte para a vida. 
Reconto as frases feitas, os calendários com crianças sorrindo, alguns breves animais de estimação. 
Então, e, de seguida, adequo o desejo ao seu ideal objecto: quem me dera ter quatro braços e quatro pernas! tudo fazer com a precisão dos anjos. Vestir qualquer roupa intrajável, tornar-me invisível e invisível peregrinar esse fundamental gesto - destruir toda a mentira. 
Procurar ainda a substância das coisas, que as marés me atinjam e ao atingir-me revertam a contagem do tempo. Ser impossível, tal qual toda a impossibilidade. 
Entretanto, é fundamental viver as oficinas, esses locais onde as mulheres são nuas e descartáveis como fósforos; onde tudo é possível acender-se e somente tu és tão longe quanto os Km´s que nos distam.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho



Breve curso de introdução à economia Grega - II

Ao contrário de mim


Descendo os céus sobre Roma
a intangível tarefa do reencontro, 
                  o fugaz vislumbre
                    desse reflexo que um dia fui
                    minha alma cindida
                                                     nas vozes da infernal multidão.

Publios Virgilius Maros
                                      este nome que tão só o cheiro da morte me exala.

                                      A decomposição de um corpo,
                                      o que de mim resta ferozmente abandonado 
junto ao átrio das verdades hipotéticas,
         agora que uno já não sou.

Um único e último desejo me aproxima das Musas:
                                                                                    um qualquer fio de Ariadne 
                                                                                    que me conduza
                                                                                    à mais tenaz acrobacia,

                                                                                    essa inadiável coabitação com o meu fim.

Ao comércio com a ciência me expus
e aí me deveria ter tornado sábio.

Ao invés, 
                  toda a minha incerteza se dissolveu na obra onde este povo erigi.
                  Toda uma lucidez metaforicamente transcrita
                                                                                             na Eneida.

Hoje, 
mais que nunca 
                           amaldiçoo o funesto dia em que Mecenas ao Imperador me apresentou
                             a mim, que voz não tive para negar a escrita da odisseia de Eneias.

Ó Deuses, 
                   em Mantua me fazei presente
                   para que de novo minha doce infância possa vislumbrar,
                   não mais esta infinidade de grãos de areia 
                   perdendo-me entre meus dedos.

Abençoado 
                    no dom de com a minha arte tocar o coração do mundo,
                    de ao humano proporcionar um qualquer passo mais 
além da pura vulgaridade
        um qualquer passo mais além da atroz vileza crepitando 
onde quer que o vulgo se assome,
        no sono me deixei perder os escombros da intrépida realidade.

Estilhaço-me agora na noite há muito esquecida 
aí onde erigo o panegírico do Império que agora renego, para sempre.

Ó Grécia, 
ó eterna habitação dos deuses 
eis-me a minha dação às origens 

a realização do sonho há muito acalentado:
morrer o meu regresso

  junto a Brundísio. 

Rui Carvalho, s. d.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Desertos - XXXIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Anseio tornar meu coração uma biblioteca, pejar-me de livros até ao tecto e acompanhar-me assim a secreta ambição de sobrepor-me aos mosaicos. 
Os mosaicos apenas duram até formarem a abóbada onde a vista se perde.
Adquiro o olhar no cinzento, esse tom que me sulca o bem e o mal. Aí me adequo às grandes catástrofes, e, às pequenas alegrias. 
Também os livros formam longínquas paisagens e a vida é um túnel apertado que nos conduz algures onde nos perdermos, ou não. 
Somos conduzidos como gado até esse local onde nos querem mortos, um qualquer sofá babando a estupidez que nos impingem. Tudo se trata de movimento, da inócua berraria dos apresentadores de telenovelas reduzindo-nos as diferenças, menos ainda que o preto e o branco, sem cores intermédias. 
Seria necessária a dureza do granito para suportar tanta inocuidade. Seria necessário esvaziar-me o espirito, tornar-me tão estulto quanto as várias modalidades do estar sentado. Esquecer que o mundo existe e exige participação. 
A participação nas formas são degraus a subir até um qualquer lugar onde a realidade irrompa. Por conseguinte, devo treinar os músculos até ser apto. 
Percorro agora as virgulas, todos os pontos de interrogação. A dialéctica do mundo: 
a eterna luta dos contrários até à síntese, ou, a miserável vitória do maior poder? Isso e apenas isso.
Seja como for, devo libertar-me as amarras, ganhar calo na estranheza até que nada me seja estranho.

Um desígnio; um desígnio apenas!

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Entre o imbecil lagarto escolhendo-se na mais estulta penumbra e o magnanimo alvor no compartilhamento do Belo - Ecce Homo. 

Rui Carvalho, s. d.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Desertos - XXXII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Um labirinto de troncos e ramos, nada mais que a realidade que nos cerca. Iludimo-nos a imberbe tentativa de domar a natureza esquecendo-nos a escuta das raízes crescendo - que as raízes do mundo crescem até ao cerne da lava, até se tornarem puras metáforas. Por baixo deste solo existem rios correndo até ao magma, esse distante lugar que o universo nos centra. Segundo parece tudo começa aí, nas enormes bolas de lava rebentando por todo o lado. 
Fomos ardendo até ao arrefecimento, nós e a matéria do mundo formando uma unidade esférica - singular. 
Que esta história dure desde há milhares de anos é desde logo um milagre. Contudo, talvez seja possível saber o que o mundo é, mesmo sem conhecimento directo dos factos. Aliás, nunca pode ser de qualquer outra maneira. Trata-se de nos pormos a adivinhar, essa mínima diferença entre o xamanismo e a filosofia. Trata-se sempre de chamarmos a nós a Natureza, invocarmos dentro de nós os rios, os mares, as montanhas. Basta sentarmo-nos num qualquer penhasco junto ao mar. Aí onde tudo se ouve, onde o mundo nos segreda nossa precariedade. 
Estamos sempre a um mero passo de cair. 
Por mais que treinemos andar jamais seremos seguros. Bom, a não ser que sejamos nados e criados no estupor. Os estupores gostam de julgar-se invencíveis, de subverter todos os outros no riso da sua ganância. Como são gananciosos os estupores, querendo tudo para si! Não apenas a riqueza material, também as almas que a criam. 
A perfídia está tão bem engendrada que sequer alguém dá conta dela. 
Pois é, os muitos não leram os Antigos. Nem os Antigos nem qualquer outra coisa. Nem um passo deram. Os livros são duros como ferro e as cabeças são ocas como o vento.
De qualquer modo, a vida explodiu na matéria unicelular e um dia tudo voltará a explodir de novo.    

Se tudo isto não for poesia, não vislumbro que outra coisa possa ser. 

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

terça-feira, 23 de maio de 2017

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Love songs to no one else - XXXIII

XXXIII

Por entre todas as coisas, o difícil vislumbre de teu rosto entre as faces que reparo. Tão único, tão por dentro da certeza de Fidias. Tão por dentro da geometria plena. Do nariz para os olhos, esse percurso do olfacto instalado-me no cérebro teu cheiro, a transparência do mundo. 
As várias cores restando um qualquer animal. Eu, sucumbindo teu encanto. 
Somo todas as possibilidades e nenhuma delas te subtrai. Percorro esse percurso até ti, até ao precioso lugar onde todos os algoritmos te significam.
É aí que o mundo pára! Sorvo a sua paragem. Sinto apenas a leve brisa dos alguns rios colorindo tua fronte. 
O diadema. Esse lugar de reencontros. Aqui te oferto o mundo - os sons, as cores, o toque - as formas enformando a matéria. 
Percorro tuas pernas, os frutos nascendo a solidez da pele. Nossas línguas crescendo até à ilimitação. 
Temi não fosses possível. Ou. Não pudesses sequer imaginar aquilo que por ti sou capaz. Excalibur, lembras? Eu e a espada no mesmo lugar, todo um esforço em tua defesa. 
Estas sombras que nos reflectem os corpos. Estes dias reflectindo toda uma demora. 
Desde sempre te aguardo!    
Desde sempre aguardo o difícil vislumbre de teu rosto entre as faces que reparo. Tão único, tão perto da geometria plena. Todos os lugares percorro na busca daquilo que me és. O som, o cheiro, os passos, o riso, todas as coisas que em ti me inflamam. Não. Não desisto de tua procura. Se esperavas minha fuga, saberás quão perto estou. Se esperavas minha chegada, estou a milímetros de nossas vidas.

Que o amor me arraste a teus pés, para que neles beije a certeza de o mundo ser em ti.

Álvaro Cunhal, s. d.

domingo, 21 de maio de 2017

Desertos - XXXI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



A fuligem pre-anuncia o desastre. Os anos passam, ou, vão passando até nos tornarmos o gerúndio de nós mesmos - sem passado nem futuro - somente toda uma sombra que nos estica até ao limite.                           
Os instantes retratam a vida melhor que a vida se retrata a si própria e a volatilidade do tempo impossibilita a fixação de sentido. De qualquer modo, nossos olhos não acompanham a velocidade das coisas e, assim sendo, o mundo é uma assombração que nos visita a cada vislumbre. Sim, as paisagens são-nos sempre outra coisa diferente do que vemos. 
Somente a memória nos fixa. 
Não fosse a memória seriamos loucos como peixes, embatendo nos vidros do aquário a cada vez que o mundo nos chama. Talvez fosse melhor assim. Teríamos um olhar sempre novo e a magia dos encontros acontecer-nos-ia a cada segundo. Desconheceríamos os aziagos factos. Que o mundo é sempre aquém daquilo que precisamos que seja. Que a ilusão nos ilude até nos deixarmos sem pé. Depois da queda nossos dentes auto destroem-se e outra coisa não nos resta senão o destino das vacas, ruminando erva até à regurgitação. 
Somos o breve vomitado de deus. Habitamos casas limpas e acéfalas, alguns campos junto ao rio. João Batista aqui viveu até ter sua cabeça decepada nas mãos de Salomé. 
É sempre assim. 
Procuramos a purificação do espirito e tudo que sobra é este insólito desejo, a sólida carne da mulher amada tornando-me cada vez mais longínquo.   

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXXVI

XXXVI

Rui Carvalho: Do modo como descreves a génese da Hidra do capitalismo a partir da  industrialização das sociedades modernas e a imposição do consumo como cerne da sociabilidade comunitária podemos depreender que o poder tem uma história, uma cronologia que lhe é própria. Segundo parece, ao longo dos séculos terá ocorrido uma transformação ou mutação nos modos de ocorrência do poder, é isso que podemos depreender? 

Void: Nos primórdios do seu exercício o poder era conquistado através da luta, assim foi desde os primórdios dos tempos. A conquista do poder implicava um acontecimento fundamental: que o suor escorresse, que o sangue escorresse. O acesso ao poder implicava a carnificina, que o cheiro ocre da carne habitasse o instinto das lâminas guerreiras. O poder era adquirido na luta, era uma conquista dos mais fortes. A riqueza estava intrinsecamente interligada ao poder. Com o acesso ao poder vinha o acesso à riqueza. A riqueza provinha do suor das terras conquistadas, palmo a palmo. Era assim que o vencedor guerreiro se tornava senhor. Tornado senhor, o aguerrido guerreiro impunha a diferença. Foi a partir da primazia do senhor/guerreiro que se estabeleceram as diferenças sociais. O triunfo era reconhecido como um valor e esse mesmo valor constituía uma mais valia que era recompensada com a conquista de poder, da riqueza que dele emanava. O poder era o poder do mais forte e o poder do mais forte era imposto como lei. Ao vencer na luta, o senhor era reconhecido como superior pelos que se tornavam seus humildes súbditos. Foi pois na vaidade e no orgulho de ser reconhecido como senhor que o vencedor guerreiro se moldou na figura do aristocrata. 
A premente disposição para a luta era aquilo que distinguia o senhor e o carácter do senhor. Tal como o orgulho e a vaidade eram sentimentos que derivavam do imperial desejo de reconhecimento aristocrata. A luta podia inclusive estar dirigida à conquista de meros objectos ou objectivos simbólicos, nada alterava o epicentro da vontade de lutar. O epicentro da vontade de lutar era exclusivamente alicerçado na imperiosa vontade de vencer. 
Onde e quando ocorreu então essa quebra na vontade de vitória, na vontade de poder? Porque é que o processo civilizacional nos foi amolecendo os instintos até prescindirmos da sangrenta luta pelo poder? Porque quebrou o senhor o seu orgulho aristocrata e se deixou dominar no igualitarismo? 
A imposição do domínio quantitativo. É essa a resposta. A difusão e predomínio do império do quantitativo conduz o senhor aristocrata ao temor da quantidade, a temer as quantidades. O predomínio do quantitativo revela-se o instrumento fundamental que conduz à quebra do poder do senhor e do seu ímpeto aristocrata. A partir de uma determinada altura os servos descobrem o poder do quantitativo, o poder das quantidades e da ideia de quantidade. A ideia de quantidade torna-se o instrumento de guerra dos servos. 
Os servos são imensos, sempre foram imensos. O momento do descobrimento do poder da quantidade é o momento chave que sinaliza a quebra do poder aristocrata. Os servos descobrem que são muitos e que sendo muitos podem agrupar-se. Ao agruparem-se entre si, os servos adquirem-se no modo da manada. A manada é o instrumento de guerra dos servos. No modo da manada os servos percebem que podem contrabalançar o poder do senhor. A determinada altura, os servos tomam consciência da miséria do seu estado. Os servos encontram-se num estado de submissão. No estado de submissão, a miséria é algo que é comum a todos os servos. Os servos são os muitos na miséria. Aí está a chave. Os servos são muitos. A multitude. É na aquisição da consciência da multitude que se erige o poder dos servos. Somente a multitude poderá contrabalançar, competir com o poder do senhor. Os servos existem num estado de submissão, esse é o seu estado natural. O estado de natureza do servo é o ser submisso. Enquanto submissos, os servos não podem ser considerados homens, pelo menos em sentido pleno. Dai a revolta, dai a insubmissão dos muitos.
Perante a ocorrência da insubmissão dos muitos, o senhor tropeça no receio da morte, no receio da morte violenta. O receio da morte torna-se o pior inimigo do senhor aristocrata. Se antes o receio da morte violenta apenas habitava o coração dos servos, a partir do momento que que o servo se pesa no poder da multitude, o receio da morte violenta passa a habitar também o coração do senhor. A partir daqui não só os servos recearão a sua morte violenta às mãos do senhor, também o senhor aristocrata passa então a temer a morte violenta às mãos da multitude de servos. É neste estado de coisas que a preservação da existência física individual se mostra o mais forte imperativo moral. 

O poder deixa de ser o poder do mais forte para se tornar o poder dos muitos. 

quinta-feira, 18 de maio de 2017

Desertos - XXX - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



A vegetação sempre aqui esteve, mesmo quando esta sala era habitada pelo choro das crianças - todas elas nascidas no percalço de não haver mais lugares onde nos habitarmos. Após terem nascido era necessário acalmá-las para o susto do mundo. Alguém me pegava ao colo para que sentisse a estranheza dos braços, o vigor de perder o pé, ser retirado ao chão. Ao fim de poucos abraços habituei-me ao escuro. Dormia sozinho num quarto amplo onde os pequenos ruídos se tornaram a minha paisagem. Os sons dos passos e o ranger de portas foram toda a música com que cresci. Assim apreendi os tons do mundo, toda a musicalidade entre o riso e o choro. 
Quando voltei já nada havia. 
Parti levando comigo o esquecimento, os pequenos alforges repletos de vegetação, a amalgama dos dias, uma espécie de assombração. Tentei habituar-me noutros lugares, pôr minha vida a funcionar com o auxilio do motor de velhos automóveis. 
Abandonei depois a beira da estrada, como se a algum lado fosse. 
Pois é, desenhamos figuras na paisagem, linhas rectas, tracejados. Deixamos sinais, a violência que o tempo nos exerce. Somos criados em círculos. Sem inicio, sem fim. Repetições, somos meras repetições. Eternamente nos repetimos na miséria de não ter conserto. 
Apenas isso. 

Os corações estragam-se e o resto das coisas pouco ou nada importa. 

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

terça-feira, 16 de maio de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Ladrões como nós aguardam sempre o último comboio, que no momento do embarque desembarquem a paixão.

Rui Carvalho, s. d.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

domingo, 14 de maio de 2017

Desertos - IXXX - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Este é o trabalho de deus. A época das vindimas e o lento pisar das uvas. Somos semeados nos mais íngremes socalcos e depois colhidos como sumo. Nós, que nos prenhes lagares nos pisamos para gáudio de um deus sedento. 
Os dias são claros como água, somos nós que criamos as virgulas onde nos tropeçarmos os corpos. No tropeço nos pisamos. Pés e mãos trucidando quem connosco se atravessa.
Para além do mais.
A vida cresce para lá dos pontos cardeais e a leste da cidade antiga de Jerusalém há um monte onde foi perpetrada a perfídia. Todos os anos aqui nos recolhemos, no jardim de Getsamni, no dia anterior à crucificação de Jesus. Segundo os Evangelhos, a angústia aqui foi tão profunda “que Seu suor tornou-se grandes gotas de sangue, correndo até ao chão.” Suor e sangue, essa linguagem única que os judeus sabem interpretar como ninguém. 
Cristo é na proporção de 1 para 1.000.000,00. 
Tal implica que entre nós haja vários Judas e a despedida com um beijo indicie sempre o pior que o mundo é.  
Para além do mais.
O húmus vermelho é uma condição necessária à criação. 
Devemos pois ser moldados na terra áspera e sedenta. É que sem sangue escorrendo - quase eterno - a vida secar-nos-ia até ao definhar da pele. 

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho 

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Desertos - XXVIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Todo este cimento, forjado na monotonia, rarefeito como a atmosfera. Ao inalá-los guardo em mim o destino dos terríveis lagartos. O que representam 230 milhões de anos na economia do Universo? 
Tudo se trata de enormissimas explosões. Meteoritos. Profundas crateras. Espessas nuvens  de poeira eliminando as espécies. 
Muito bem, chegámos ao humano, esta evidência fóssil da acumulação de todos os detritos. Um quadrúpede que se sustenta sob duas pernas. A inteligência, já se sabe. Somos distintos, tão distintos. Excepto quando o nevoeiro nos traga. 
O nevoeiro - este lugar onde me situo. Será aqui que o recobro virá, ou não. Nunca se sabe o que o nevoeiro nos esconde.
Resta-nos esperar, por dentro do nevoeiro. Esperar jamais colidir uma qualquer predeterminação. São as predeterminações que nos sufocam, que nos tornam imbecis como todos os outros. As predeterminações cegam-nos para o que verdadeiramente importa. 

A Arte.

Antes correr o labirinto de olhos vendados que sustentar-me na predeterminação.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Love songs to no one else - XXVI

XXVI

Habitei florestas até me chegar a ti. Nelas colhi pequenos arbustos, a ânsia de fazer-me luz. Pequenas peças de madeira incendiando a noite, o vislumbre de teus olhos. Decidi não regressar enquanto durasse o engano. Um mal entendido gerado pela mecânica do mundo. Entre grotescas vozes escondendo-me da verdade. 
Nas florestas me fiz velho, uma juventude tocada pelos silêncios. 
Cheguei e parti sem que nada houvesse mudado, o continuo engano do sol iluminando a noite mais sombria. 
Jamais soube como estar neste corpo, nesta vã matéria que me finca o chão. Foi a insegurança da trajectória que me conduziu à periferia das coisas, talvez. Fosse mais seguro no andar, atingiria agora o cerne do mundo? Nunca sabemos com que contar. Somos planos abortados ao virar de cada esquina. Conheço a angulosidade do mundo. Dos dias, as pontiagudas arestas. A aprendizagem da perda, da vida rendendo-me ao chão, a cada passo. 
Procuro ainda. 
A breve clareira entre a copa das árvores, o esguio olhar desse instante. Uma ramificação entroncada no longínquo saber das coisas. 
Para quê a doação de um cérebro? Para que nele saibamos que a morte nos visita?
Tantos corpos arderam para nada. Tantos milénios engajados na chacina.
Devo ter-me perdido olhando o céu, sem ponto de referência. Só assim percebo a diferença de só eu ter morrido de tédio. Tantos outros vingando o solo, inscrevendo estrelas no passeio. 
Nada me interessa o comércio dos homens. Nada. Nada a não ser o asco, o desprezo rolando colina abaixo, até ao incêndio dos oleodutos. O petróleo jorrando nas cidades costeiras. 
Fui ardido nos incêndios e somente agora reganho a pele

Renasce-me. Tu, que me és o dom do renascimento. Quero que me renasças!  


Álvaro Cunhal, s. d.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Há um cadáver que nos cresce por dentro da pele. Atingido o limite da derme só nos resta o sobressalto.

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 7 de maio de 2017

Desertos - XXVII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


Às 16H00, religiosamente. Assinalava-me na piromania. Terminava as aulas nesse horário quando as aulas terminavam muito depois. 
A música chegava de continentes distantes, de Inglaterra basicamente. Estranha coisa essa, deixar namoradas esperando em troca da mera voz de um homem. Havia contudo esse éter que me embriagava a descoberta. 
Mesmo aqui ao lado havia vida - O Som da Frente. 
Aqui nada havia excepto o enfadonho fado do ensimesmamento. Era necessário sairmos de nós próprios para voltarmos a nós mesmos. Havia a magia das bandas fazendo magia. Echo and the Bunnymen, a paixão antes ainda das paixões.    
Os transistores percorrem o vazio, emitem sinais que se propagam numa determinada frequência de onda. Daqui até minha adolescência. À adolescência dos seres vivos que se reservam à aprendizagem da queda. 
Tanta miséria faz lembrar-me alguma coisa. Que há algo que nos une, essa pira de corpos transmitindo sinais por entre as chamas - o espirito. 
Há chamas que jamais se extinguem e pessoas que são eternas.
Dance, dance, dance to the radio!


À memória do António Sérgio.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho