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quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XLIII

XLIII
Rui Carvalho: o advento do fim da história e a imposição do pensamento único como modalidade única de ser e de pensar é pois uma impostura hedionda.
Void: vivemos uma espécie de esquizofrenia quando, por um lado, achamos poder modular ou conformar a natureza à nossa própria vontade e, por outro lado, achamos que a realidade social não é mais moldável, que chegámos ao fim da história, que a história tem uma vida própria e que é a história que nos dita as suas próprias leis. 
Há um clara distinção entre natureza e sociedade, entre o domínio natural e o domínio social. 
As formulações sociais são ideológicas. Contrariamente ao que sucede com a natureza. Contrariamente aos que sucede com a natureza, que se rege pelas suas próprias leis, as sociedades humanas são realidades ideológicas. A realidade social humana é puramente ideológica. Ideias. As ideias são o fundamento da realidade social. As ideias, não os números. A realidade. A realidade social não são contas de somar e de sumir. A realidade social não se divide nem se multiplica. A realidade social vive-se. A realidade social vive-se através das ideias, não é uma equação matemática, é uma formulação ideológica. Ao contrário do apregoado, ao contrário do pregão neoliberal acerca da inevitabilidade, acerca da inevitabilidade dos factos sociais, a realidade social não é inevitável. A realidade social é mutável. A realidade social é aquilo que queremos que ela seja. Como se molda, como se constrói a realidade? Como se constroem as realidades sociais?
Acontece que o neoliberalismo é um processo que se funda na estúpida ideia da abolição da contradição do cerne da realidade. É essa a estúpida ideia que nos é vendida pelo ideário neoliberal. As contradições. A contradição abolida por decreto. Como abolir a contradição do mundo? O mundo. A mundanidade. O devir é a mais absoluta das contradições. A luta. Como abolir a luta do mundo? Como abolir do mundo o mundo? Como abolir do mundo a contradição? Sem contradição não há mundo. Não há mundo sem contradição. O mundo sem contradição é o não mundo. A existência. A existência é a mais radical das contradições. A vida e a morte. O mundo. A morte e a vida. Aqui e agora. O mundo. Vida e morte. Respiro? Não respiro? As contrações musculares. Até quando? As sístoles. As diástoles. Até quando? A vida. Até quando? A vida interrompida por decreto. Como interromper a vida por decreto? 
Tal qual o comunismo, o liberalismo funda-se na mesma estulta ideia que um dia o mundo deixará de ser contraditório. Que a determinado momento histórico não mais existirá processo dialéctico e a própria história atingirá o seu fim. Por fim, a finalidade encontrará a sociedade livre de contradições internas. O culminar de todo o processo histórico. O que diferencia ambos os modelos é o facto de que para os comunistas a implementação do estado liberal não resolverá a contradição fundamental. A luta de classes. A luta entre a burguesia e o proletariado. O conflito. O estado liberal não resolve o conflito de classes. O estado liberal não significa a universalização da liberdade. O estado liberal é apenas a vitória da liberdade para uma classe determinada. A burguesia. A classe dominante. Por conseguinte, o homem liberal não é um homem livre. O homem liberal permanece alienado de si próprio. O capitalismo. O capitalismo controla o homem, alienando-o. O homem liberal é o homem tornado escravo do capital. O fim da história. O fim da história só será concretizável através da vitória do proletariado. O proletariado. O proletariado, a verdadeira classe universal. Somente a implementação da sociedade comunista poderá pôr termo à contradição, à contradição que resulta da luta de classes.
Pelo contrário, para o neoliberalismo o estado neoliberal é o santo graal, a concretização do céu na terra. É contra o inculcar deste estúpido estado de coisas que nos devemos rebelar.


Rui Carvalho, s. d. 

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Útero - XVI - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



O mar invade o pleito do meu fígado e hoje é já a tarde em que partiste. Depois, amanhã é um qualquer cinzeiro aguardando as cinzas do que fomos. De qualquer modo, é o vigor metafísico da paisagem que nos aproxima da melancolia. Há estes passos que nos alongam as manhãs; e é necessário segui-los até ao cerne das metamorfoses.  
Entretanto.
Entretanto vão chegando os vendedores de castanhas, julgo terem sido eles a trazer-me o cheiro da maresia.
E o vinho, o vinho não colmata já a tua ausência, a sequiosa precisão desde onde me chegavas.
Ainda assim, um oásis é o lugar onde sede e água se juntam como possibilidade e há ainda vários caminhos que precisam ser percorridos. Antes de lá chegarmos, de tocarmos o cerne da paisagem, lidaremos com miragens. É exactamente isso que somos uns para os outros, miragens que se erguem rente à precisão dos nossos olhos. 
Há contudo esta evidência larvar percorrendo o antro das coisas. E não obstante sermos cegos, tanto para o demasiado grande quanto para o pequeno em demasia, deve haver uma qualquer magia que nos funda. 

Tudo se trata de uma questão de fé.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Sobre toda a escuridão - XIII - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Como não percebemos que a história se revela tão mitológica quanto a mitologia ela mesma, e que chegamos à figura de Cristo através do percurso dos mitos? Transformámos a mitologia do Sol vencedor num acontecimento teológico. Sim, a vitória da luz sobre as trevas é uma ambição de sempre. 
Mantemo-nos contudo na periferia das coisas. Há vitórias que não nos dão nada de novo. Pelo menos neste mundo. E não seria necessária a sua reversão para que existisse qualquer outro? Qualquer outra coisa que não esta imensa escuridão?
Aproximamo-nos do solstício de Inverno como se nos aproximássemos de um trem em andamento. Corremos céleres até estarmos quase próximos. Quando estamos próximos, o trem afasta-se de nós. De qualquer modo, não temos fôlego para mais…

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

A vida não é no tempo e no espaço. Qualquer outra coisa que não o perene instante onde nos acontecemos. O instante dos encontros, é aí onde nos devemos procurar. 

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XXIII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Não, não podemos ser mais que um único triunfo. Após a aquisição da juventude a queda torna-se-á irreversível. Será essa aguda consciência da queda que nos fará perder o pé. Sim, somos aqueles que se perdem, uma estranha gente ecoando na tristeza. 
De qualquer modo, a desorientação é um lugar iniciático, uma condição fundamental para a procura de sentido.
E olha, quando os dias correrem sobre nós, nós esticaremos os elásticos onde pende a miséria que nos une. Depois soltá-los-emos de repente e, com ambas as mãos abertas sobre o mundo, moldar-nos-emos nas possibilidades.
Se medirmos bem os percursos tudo isto é mitologia. 
O sangue corre-nos desde o coração, por entre os túneis abertos em nossas veias e, atingiremos a velocidade máxima antes de sermos tolhidos pelo Minotauro. Creta existe desde sempre e a memória de Teseu ata-nos no mesmo fio onde juntos perderemos a respiração. A realidade é labiríntica e os nossos sonhos também. Resta-nos rever a eternidade da Tragédia, alcançar a catarse através da re-persecução da beleza. 
Com um olhar sólido entre ambas as margens e o som das cascatas brilhando, assim nos resgataremos as paisagens.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 10 de dezembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XXII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Nascemos sem sentido e sem sentido morreremos. 
Enquanto isso, a grandiosidade pinga-nos nos olhos desde lugares distantes. Soprados desde o infimamente pequeno ao infinitamente grande, tornamo-nos lavrados na metamorfose das coisas. Ahh! Não fossemos cegos o mundo seria outro. Não fossemos cegos teríamos lido os livros, as brancas folhas onde tudo está inscrito.
A ciência não nos traz verdade nenhuma, nenhuma verdade que não seja aquela que é dada consoante nossos olhos. Somos cegos para a magia, não vemos a magia das coisas rondando as nossas vidas. E tudo, tudo se trata de magia. Sim, mesmo os fenómenos físicos mais simples. O fogo transforma a água em vapor e o vapor inala-nos os ouvidos até sermos por dentro da verdade.
Trata-se contudo de unirmos os pontos, entre o inicio e o fim. Depois, depois logo se verá. Logo se verá se a magia funciona ou não. Se estamos ou não aptos para nos exercermos no renascimento.
Nascemos sem sentido e sem sentido morreremos.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Sobre toda a escuridão - XII - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho


Um deserto que tudo acolhe não é lugar para gente como nós. Os proscritos são isentos, escolhem lugares onde jamais poderão estar. E nós, os isentos proscritos, vagamos silêncios que mais ninguém ouve. 
Não temos mais com quem falar a não ser com gente como nós. Nós, os incomuns proscritos, desdenhamos o comércio deste mundo. Desdenhamos os lugares onde todos os outros vagam, este império de dejectos assombrando a mesquinhez. 
Procuremos idênticos ouvintes e caminhemos então. Caminhando, façamo-nos medrar entre as pedras em caminho. 
E o silêncio, o silêncio é uma escuta árdua, exige toda uma solidão.
Sejamos pois em continua fuga aos resquícios deste mundo, ao soterramento que nos impingem. Fujamos do mundo como quem foge de um Deus irado. Ao fugir do mundo aproximar-nos-emos da queda, da queda e da água antes da queda. 
Aproximemo-nos da água escorrendo em catadupa, esse lugar desde onde nossos ossos nos escreverão as mais belas canções. Em nós haverá o poder da água ardendo dentro das gargantas sedentas, o íngreme lugar desde onde nos ocorre o intuito das palavras. 

De qualquer modo, este deserto que tudo acolhe jamais será lugar para gente como nós.

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 3 de dezembro de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - XXI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho


O passado, o presente e o futuro são efabulações e a nossa mente é pródiga em enganos. 
Este será o enredo: deixarmo-nos adquirir numa qualquer obstinação, algo que não possa ser menos que o visar do Céu. Depois transpomo-nos na leveza do vento, derivamos o mundo; isto é uma promessa.
21 gramas, mais ou menos isso.  
Olhamos o mundo de soslaio e aguardamos que a realidade ocorra. 
E os instantes. A realidade são instantes. A arte é saber colhê-los quando ocorrem. Quando a chama eclode é necessário que nos deixemos eclodir com ela. Acompanharmos a tendência do fogo para a propagação, este é o segredo.
Nenhuma outra coisa nos salva a não ser os instantes que nos salvam.
É isso, devemos colher-nos os instantes, nem que nos leve uma vida inteira.
21 gramas, mais ou menos isso: eis a grandiosidade do que somos.

Abulo todos os planos para que me transpareças.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 2 de dezembro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XLII

XLII
Rui Carvalho: aquilo que defines como mitologia do pensamento único tem como principal consequência o facto de nos ser imposto uma espécie de simulacro democrático?

Void: sim, tal implica que vivamos sob o jugo de uma espécie de simulacro democrático. A teia urdida pelo sistema financeiro a partir do seu grande instrumento de poder, os denominados mercados financeiros, coloca completamente à sua mercê o poder político. A comunicação social encontra-se ela própria completamente manietada pelo poder financeiro. Os jornais e as televisões são pertença da alta finança e dos grandes grupos económicos. Tal facto conduz ao manietar do sentido de voto das populações através da edificação de uma opinião publica bi-polarizada em torno de dois grandes partidos que se revezam entre si no acesso ao poder político. Tudo isto se edificou a partir duma crença, duma mitologia. 
As mitologias são fundamentos sociais. Os Gregos Antigos tinham as suas vidas fundadas na crença no Olimpo. Os Deuses Olímpicos eram os modelos em redor dos quais se erigia o mundo Grego. A mitologia é um advento fundamental, sem mitologia tornamo-nos secos. Secos e ocos. Secos e ocos perdemo-nos para a beleza das coisas. 
Contudo.
A mitologia do pensamento único sorve-nos as energias, a vontade, a vontade de pensar, a vontade de sonhar. O que é um mundo sem energia? O que é um mundo sem vontade? O que é um mundo sem necessidade de sonho? 
Precisamente isto. 
Andamos de olhos fechados um dia inteiro. Por vezes abrimo-los à noite. Mas apenas alguns de nós o fazem. Andamos de olhos fechados. Andamos de olhos fechados e a doença dos olhos fechados dura-nos uma vida inteira. Tememos as insónias como quem teme uma vida desconhecida. É esse o nosso medo. Tememos a verdade. E a verdade é esta: somos dirigidos como rebanhos de gente acéfala
Somos nós os responsáveis pela nossa própria cegueira. Não, não há instituições secretas por detrás de toda esta efabulação social. Não, não são os políticos os únicos responsáveis. Não, os políticos não são todos iguais. Não serão todos iguais enquanto defenderem uma qualquer ideologia. O problema é a não ideologia. O problema é o definhamento da vontade, sobremaneira da vontade de sonhar.  Somos nós que o queremos, somos nós que escolhemos o definhamento da vontade. Somos nós que diariamente nos sentamos frente aos televisores babando a estupidez das várias “telenovelas”. Desejamos coisas, tantas coisas. Desejamos tanto as tantas coisas que as confundimos com a nossa alma. 
De qualquer modo, as sociedades humanas são criações ideológicas, criações puramente ideológicas. Quanto somos imbecis. Quanto somos imbecis quando deixamos que nos imponham uma sociedade isenta de ideologia, uma sociedade asséptica onde nos possam escarrar na cara toda a estupidez. O assepticismo social implica a morte das ideias, a morte da ideologia. As ideias e as ideologias definham a cada instante. Somos nós os únicos responsáveis pelo seu definhamento. Raios partam as desculpas.

Rui Carvalho, s. d.