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domingo, 29 de janeiro de 2017

Desertos - XI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


Demora-nos uma vida inteira o apuramento para enfrentar o mar, percorrer a substância das coisas, aquilatar a estrutura dos materiais; tornar-nos pertinentes e na pertinência enfrentar as vagas. 
Tornei-me madeira revestida. Vedei-me com estopa para impedir a penetração das águas.
Depois. Depois instrui-me na arte da navegação. Li todos os livros sobre oceanos. Debrucei-me na escuta das águas, escutei a estrutura das marés; o marulhar do vento incentivando a viagem. 
Contudo, não parti ainda. Fui seco na coragem da partida. Arranquei-me ao solo, mas minhas raízes ainda me arrastam os pés no lodo. Adquiri meu peso na pressa de chegar longe, a um cais que é agora cada vez mais longínquo. Mesmo após ter vencido todas as batalhas, o mundo ainda me sopra o desalento de uma guerra perdida. 
Estaria disposto a suportar o embate das vagas, sempre estive. Houvessem vagas que me levassem perto de uma beleza Antiga, de uma tragédia erigida para gáudio do espirito vindouro.  
Pudesse eu soprar o vento e com ele alimentar toda uma sede de vida, fazer nela atolar toda a estupidez do mundo. 

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Desertos - X - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho




 Dar-se passos em redor da deriva; olhar para cima sem que se reze. Saber que no deserto não existem cruzes, tão só a persistência do vento ecoando as intempéries. Aguardar as tempestades de areia. Coabitar as tempestades. Sentir a areia pesar e assim rasgar o ar nos pulmões. 
Viver a vida como ela é, com a dor apertada junto ao pescoço. Soluçar. Persistir no soluço.
Encarar as metástases como rios. Ser como os rios sangrentos onde me habito. Ser os conjuntos de células vibrando-me por dentro das vísceras. 
Aguardar a imergência dos organismos. Aguardar o crescimento inflamando a divisão celular. Os ciclos de vida. Aguardar o envelhecimento e a morte. 
Precustrar a matéria orgânica. Ser a intensa deriva da matéria. Ser a genética dos corpos, o processamento orgânico dos materiais até à proliferarão anormal da divisão celular, até ao tumor anichado no peito. A germinação cancerígena habitando a viagem linfática, sanguineamente percorrendo os vários órgãos. 
A matéria, a inflamação da matéria, o inorgânico protelado no orgânico.

Ninguém jamais venceu a guerra contra o corpo, nem mesmo Jesus, cuja carne sucumbiu no Martírio da Cruz. 

domingo, 22 de janeiro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXIV

XXIV

Rui Carvalho: “criar raízes no sonho” é uma afirmação poética. Segundo o que afirmas parece que nos deveríamos firmar poeticamente. Contudo, essa é uma condição periclitante que exige de nós uma “estrutura óssea” quase à prova de bala. 

Sebastien Void: claro que sim, a firmação poética implica que se tenha de ir continuamente de encontro à sólida estrutura do mundo. O desprezo. O desprezo é o sustento daqueles que se firmam poeticamente. O desprezo é uma categoria ontológica fundamental. A estrutura óssea daquele que despreza é efectivamente quase à prova de bala. Somente o exercício do desprezo nos permite coabitar lado a lado com a estupidez. Na sua generalidade as pessoas são estupidamente entediantes. Este é um facto que nos recusamos aceitar. A entediante estupidez das pessoas transmite-se ao mundo, cola-se a tudo o que mexe. Basta ligar a televisão num período de pico de audiências para nos apercebermos desse facto. 
Aquele ou aqueles que se firmam poeticamente estão constantemente a estatelar-se contra a solidez das coisas. Aquele que se afirma poeticamente tem necessariamente que precaver-se contra o embate, tem que ser pois munido de todo um arsenal de resistência que lhe permita continuar a levantar-se após a constante iminência da queda. Neste contexto a faculdade de “criar raízes no sonho” implica que sejamos forjados na dureza. O desprezo. É o exercício do desprezo que nos permite o treino na dureza 
O mundo deveria estar dividido do seguinte modo: cumpridores e incumpridores. O talento. Deveríamos adquirir o talento do incumprimento. Deveríamos ser o talento de incumprir. Deveríamos deixar-nos germinar no sonho. A arte é o talento de sonhar acordado. Como não percebemos ainda a importância do acto de sonhar? Antes de sermos instruídos, antes de nos deixarmos levar na peripécia do mundo, estivemos perto de ser o que deveríamos ser. Crianças brincado com o fogo. É isso. Deveríamos ser crianças, continuamente brincando com o fogo.  
Estar adestrado para cumprir ou exercer uma função não significa necessariamente que se é um homem instruído. Pelo contrário, a educação consiste num esforço constante, num esforço continuo para nos superarmos. Contudo, numa época em que vivemos sob o jugo do quantitativo, a superação de si próprio é sempre derivada para o plano da quantidade. Preocupamos-nos em demasia com o facto de sermos melhores profissionais, com a nossa capacidade de produzir mais trabalho, mais dinheiro, e não em superarmos as nossas estúpidas e mesquinhas existências. Ser o âmbito da superação. Estar apto a sobrevir as feridas causadas pelos incêndios. Pilhas de corpos a arder, emitindo sinais por entre as chamas, é isso que deveríamos ser.  
Contudo, somos modernos. Somos todos muito modernos. Tornámos a modernidade um tempo em que qualquer descritor de pechichés é considerado um escritor. A modernidade e a pós-modernidade. O raio da modernidade. O após tudo, o após todas as coisas. A modernidade é um tempo que qualquer um, qualquer labrego pode ascender ao poder. Desde Passos Coelho a Donald Trump. A trampa tornou-se o cerne do mundo. 

sábado, 21 de janeiro de 2017

Desertos - IX - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho




Jamais vi flores nascer ou vicejar, qualquer outra coisa que não o inabitado desalento. Ainda assim, alguns frutos adoçam o sabor desta derrota: os mortos escrevendo livros para que a vida lhes sossegue; como loucos, mentindo tanto quanto possível. Mais ninguém sentou este colo a não ser eles, os loucos mortos que me visitam. 
Assim me é o mundo desvelado. A rarefação de sentido no esforço da respiração. Inspiração e expiração expiando o antro das coisas. Todas as derrotas dadas na breve vitória da criação. 
Um dia, em tempos idos, a potência do mundo aqui foi dada em acto. O mistério das horas pareceu coisa pouca. Representáramos a presença do fogo a uma distância segura e assim sobrevimos as queimaduras em nossas peles.     
Agora aperfeiçoo a queda e o tempo da queda. Sou suspenso, entre o passado e o futuro. Gravito em torno de algumas memórias, coisas nunca acontecidas. Quando criança ardia fósforos entre os dedos. Acho que já então previa a preciosidade do fogo, ardendo por dentro das coisas. Tudo agora é tão perto que quase sempre me queimo. Antes não era assim. Antes havia uma distância que me separava dos objectos. Essa distância precavia meu corpo das queimaduras. Agora ardo-me tanto que sou quase em cinzas, uma ferida aberta por dentro da pele;

Ardendo-me.    

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXIII

XXIII

Rui Carvalho: a criação de raízes de que falas estabelece-se num solo que poderá de algum modo ser considerado difuso ou mesmo irrisório. A faculdade do gosto é encarada no âmbito da subjectividade do sujeito que gosta. Encontrando-se encarcerada na subjectividade do sujeito que gosta, a faculdade do gosto é dada como subjectivamente válida para todos e cada um de nós. Cada um gosta do que gosta e ponto final. É assim que o gosto é socialmente pensado. Como podemos então ganhar raízes no âmbito da subjectividade?

Sebastien Void: desde cedo, desde cedo somos impregnados na falácia da indiscutibilidade do gosto. Se encarada meramente no âmbito da subjectividade do sujeito que gosta, a faculdade do gosto é desde logo desenraizada de qualquer sentido. Se encararmos os sujeitos gostativos como iguais entre si, caímos rapidamente no facilitismo da invalidação axiológica do acto de gostar. Se o gosto de um determinado sujeito for sempre encarado como tão válido como o gosto de qualquer outro sujeito, quem quer que seja, soterramo-nos sem mais no axioma da indiscutibilidade do gosto. Contudo, mais grave ainda que o axioma da indiscutibilidade do gosto é o paradigma do gosto dos muitos. O “gosto” dos muitos é-nos dado como imposição, como algo indiscutível. Para os muitos não há bom gosto nem mau gosto. Gosta-se porque se gosta, sem mais discussão. E aquilo de que gostamos com os muitos tem necessariamente que ser, não só tão bom, mas indiscutivelmente melhor que aquilo que os poucos gostam. 
Se há alguma coisa acerca da qual se possa verdadeiramente discutir, essa coisa é o gosto. Vivemos num paradigma quantitativo, somos diariamente soterrados no peso das quantidades. Tornámo-nos seres perfomativos. Somos diariamente quantificados, avaliados na nossa performance. Somos pouco mais que dados estatísticos. Somos considerados tanto melhores quanto mais produzimos, não interessa bem o quê. Interessa que produzamos algo que possa ser consumido, que possa ser assinalado como lucro. É dai que provêm os valores que centram a ética das sociedades de consumo. 
O caso mais paradigmático da deriva estética/ética na hodiernidade é a eleição de um tipo verdadeiramente e autenticamente imbecil como presidente da mais poderosa nação do mundo.  Vivemos tempos perigosos. Vivemos tempos perigosos quando a boçalidade é tornada governo do mundo. Pior ainda que a boçalidade, o pior do humano. Toda a ganância, toda a mesquinhez, toda a perfídia, toda a insídia, o pior do humano tornado poder. A vitória do mau gosto dos muitos é a derrota da humanidade. É isso. Vivemos dias de derrota para a humanidade. 
Contudo, sem dúvida que podemos adquirir raízes. Ganhar raízes só depende de nós. Somos responsáveis pelos passos que damos, pelos territórios que decidimos percorrer. O gosto educa-se. Deveríamos educar-nos na faculdade do gosto. Deveríamos ser olhos dirigidos ao belo, a cada instante. Tudo depende de nós e da nossa capacidade para germinar no sonho, para criar raízes. 

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Desertos - VIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



A subida é uma escalada incerta e o fôlego é impreciso. Gasto-me, entre a proeza do equilíbrio e a ciência da respiração. O esgotamento das possibilidades leva tempo, muito tempo. A respiração é curta para tanto caminhar. Em cada degrau me restabeleço. Paro. Paro, por um segundo que seja. Em cada paragem a visão torna-se mais abrangente. A cada passo dado sou mais seguro ao vento, quase perto de voar.
A segurança não é ter corrimões onde me agarrar, a segurança é ser-me cada vez mais perto do desequilíbrio. 
Adquirir a ciência da queda, precaver o amortecimento dos ossos no chão, ser o truque do domínio. Ser autárquico. Pouco mais que um punhado de livros abertos entre as mãos. 
Ter contudo saudades; da música, das mulheres nuas dançando entre meus dedos. Ter saudades da fortuna e ainda assim persistir. Olhar para baixo, olhar para baixo e ser tão alto. Sonegar o tempo à estupidez. Optar pela dificuldade quando aos outros tudo parece tão simples. Esgotar tudo o que se tem naquilo que é valioso. Recusar o chamamento da publicidade. Recusar a publicidade dos dias. Não correr. Discorrer. Ganhar fôlego no cansaço. 
Trazer-me poemas nas mãos. Nas mãos trazer-me ciladas onde me fazer cair, quase devoluto. Tropeçar-me a inexistência de claridade, continuadamente. Ser incerto, de ternura incerta, peito aberto e também ele incerto, ofuscado na penumbra. Inciso, impreciso, imprestável para a calibragem do mundo.
Não correr. Discorrer.

Tão só subir, tão só subir à vertigem de ser tão alto.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Breve curso de introdução à economia Grega - I

Ao avesso da Maratona

Algures, na honra e coragem forjadas
receando porém a junção de sua humilhante violação 
ao sacrifício de nossos filhos,
as mulheres quedadas perante a iminente chacina persa marchando sobre Atenas.
Mulheres temendo a mais terrível das escolhas:
o inelutável suicídio ou a personificação da derrota.

Partira dias antes, junto com os soldados atenienses 
e breve alcançara a planície de Maratona.
Erigidos em combate à afronta persa
nossos corpos tornar-nos-iam unos, para que unos ansiássemos mulheres e filhos.

A mim, Filipides, fora incumbida a tarefa de iluminar toda uma cidade  
na boa nova da vitória grega sobre os persas.
Não sem o concurso da divina e alada ajuda de Hermes
corri veloz sobre Atenas,  
comigo transpondo a almejada notícia.
Situada a vastos quilómetros de Maratona,
de onde havíamos repelido a ousadia persa,
necessário seria agora que a distância entre o campo de batalha e a doce acrópole 
fosse com urgência elidida, de modo que 
tal luz em suas vidas se nos desse.

Ao avesso da maratona por mim vencida, 
o vislumbre exangue da meta jamais me aproximaria da singular e inaudita glória.
Eu, o dilacerado na voragem do Tempo.
Aquele a quem a distância transcorrida se tornara mais vasta que a distância a transcorrer.
Filipides, 
o mais bravo dos atletas, o predestinado à celebração da vitória
breve tombado na extrema dureza do esforço.
Filipides, 
aquele a quem num último sopro de vida apenas uma prece me foi dado proclamar:
"Eis o meu fardo, eu o sacrificado à vitória Grega!"

Ó vós que pelo tempo dos relógios vos guiais 
na inconstante busca do vil metal constrangendo vossos bolsos,
para sempre olvidai o heróico feito de Filipides.
Pois tão só quando a voragem do heróico Tempo Grego
vos tragar de um só sorvo 
estareis aptos a comigo proclamar a aguardada prece.

Rui Carvalho, s. d.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Desertos - VII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



   Atingida a puberdade todos serão chamados a meu território. 
Contudo, poucos ouvirão o chamamento. Entre os poucos, pouquíssimos restarão. Pouquíssimos serão aptos à escuta do vento soprando, cingidos às árvores onde me habito.    
  Os que ouvirem minha voz serão únicos, unívocos, singulares. Inadequados. Mais concretamente: não crescerão. Os que escutarem minha voz recusarão o crescimento, recusarão suas sombras ofuscando o redor. 
  Em volta, as crianças irão crescer. Deixarei que as crianças cresçam. O crescimento das crianças será estão escutado entre meus ramos. Os nascidos neste mesmo solo onde me firmo serão inequívocos, isentos de ambiguidade. Tal qual em mim, para os nascidos em mim não existirá outra interpretação que não seja a perene recusa da perfídia. 
  A homogeneidade do solo cercar-nos-á. Na homogeneidade nos enraizaremos. A luz transparecerá, como sempre, mas somente para aqueles que estejam aptos ao transparecimento. 
  Os que transparecerem exercerão a árdua tarefa da escuta. Seremos ouvidos escutando. Os ramos compondo meu solo serão escutados no soprar do vento e o soprar do vento comporá a harmonia do mundo. Seremos entre o ruído estridente e a beleza harmónica da composição. 
   Intocada, a música das esferas verterá sobre a copa das árvores. 

Então, somente então, serão nossos corações tocados pela magnificência das florestas. 


Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho


sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Excerto de "We stand!" - Rui Carvalho

O arranjo. As coisas arranjam-se. Pelo menos pensa-se que sim. 

A política. O arranjo do mundo. 

Pobres coitados. 

O mundo não tem arranjo. O mundo é inarranjável. Pobres de nós que acreditamos continuamente na arranjabilidade do mundo. A política. O homem da pólis. Os homens que arranjam as coisas. O ódio que tenho aos homens que arranjam as coisas. Esta miserável espécie de profetas. A política, os políticos. 
Amanhã. Amanhã para sempre. 
Como se existisse um amanhã. 
As promessas. Os políticos. Os políticos, os políticos míopes, os políticos cegos para o mundo. Os políticos cegos para o mundo prometendo o arranjo do mundo. Os políticos cegos para a leitura do mundo. O mundo não tem arranjo. 
A técnica. A especialização técnica. 
As profissões. 
Putas. Cambada de putas.
Como condenar as putas, se vós sois infinitamente mais putas que qualquer mulher vendendo o corpo? As putas têm um segredo. As putas vendem o corpo, mas não vendem as suas almas. Pelo menos a qualquer um. As putas dão suas almas aos homens que verdadeiramente querem, aos homens que verdadeiramente as possuem. Vós vendeis-vos vossas almas ao horror. Vós vendei-vos vossas almas à riqueza, ao comércio dos homens. Os homens comerciando os homens. 
Animais. Piores que animais. Tecnocratas. 
Putas hediondas. Mais que putas hediondas, filhos de putas hediondas. Como vos odeio. Como vos odeio, horda tecnocrata. Ó vil corja tecnocrata.     

A névoa. A brancura. A névoa do mundo desenhando-me a misantropia. 

Por onde ir? Ludibriados e ludibriadores. O engano. Tudo engano. Por onde ir? Como suportar o engano? A política. O homem da pólis. Como suportar o homem da pólis? As boas intenções. O inferno está cheio de boas intenções. Pelo menos ouvi dizer que sim. Como suportar a brancura do mundo? Como suportar a brancura do vosso mundo? Como suportar a névoa? Como suportar a névoa do mundo? O vosso mundo sem altos nem baixos, sem em cima e em baixo, sem esquerda nem direita? Como suportar o vosso mundo sem mundo? Como suportar a mentira? 

A ânsia de poder. Tudo em vós é ânsia de poder. 
Tudo em vós é esse hálito apodrecido, essa demanda de nenhures. 

A inevitabilidade. A previsível inevitabilidade. Os números. As estatísticas. 
O mundo reduzido a números e estatísticas. A riqueza latejando. Latindo. Os latidos da riqueza submergindo a realidade. O poder. A ânsia de poder. Tudo no mundo é ânsia de poder. A política. A ânsia de poder. Como alcançar o poder a não ser através da mentira? Ludibriadores e ludibriados. Ricos e pobres. O que tudo isso interessa? Uma questão técnica. Tudo não passa de uma questão técnica. Os ludibriados tão ludibriadores quanto os ludibriadores. Os ricos tão pobres quanto os pobres. A pobreza de espirito. A pobreza de espirito é a gangrena do mundo. 

Olhai o mundo. Olhai o mundo e vide o mundo gangrenar. 

domingo, 8 de janeiro de 2017

Desertos - VI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


Desenhar-me arduamente. Ser um destino arduamente desenhado: linhas rectas, semi-rectas, paralelas, ascendentes, concêntricas, semi-curvas - descendentes - descender até à inscrição no labirinto. Ser a petrificação, nos planos e contra-planos. Inserir-me arquitectonicamente na paisagem. No espaço exterior, edificar-me. Contrapor-me. Contrapor a organização no espaço exterior à desorganização  no espaço interior. 
Inscrever-me no tempo. Indagar.
Onde nos edificarmos após as ruínas? Onde vislumbrar ainda o sortilégio? Onde reencontrar tudo aquilo que jamais fomos? 
A reorganização do espaço interior. Buscar a construção primeva, o primacial fundamento. Precaver-me da hecatombe. A inscrição, a edificação da arquitectura da alma. Edificar a alma longe dos pântanos. 
A arche e a techne. 
Uma vida assomada pela estranheza, pela impossibilidade do mero comércio com o mundo. Exangue de mim, o sentido deambulado, consumido no caminhar. Caminhando a desesperada tentativa de projectar o produto de minha edificação. Petrificando-me musicalmente. A arquitetura, a petrificação na musicalidade.
Como ser ao abrigo das intempéries? Como ser ao contrário do mundo? Como percorrer os mapas por dentro?
A atividade exterior e o seu resultado físico: prédios, casas, igrejas, palácios. A actividade interior e o seu resultado simbólico: livros, música, pintura, cinema. A correlação do homem no universo. O instrumento e o seu símbolo. A vida inscrevendo-me a pele. 
Ser firme, estruturado - teimar; 
Possuir um ideal, um desígnio - teimar nesse ideal;
Respeitar o que deve ser respeitado e desrespeitar tudo o resto - teimar no desrespeito;
A beleza, principalmente respeitar a beleza, ser perto da beleza sempre que possível, da beleza da carne à beleza do espírito - teimar, teimar na beleza.
Ser a firmitas, ser a utilitas, ser o decorum, ser a venustas, fundamentalmente.
Inscrever-me no tempo. 
Ser-me a ser, sendo. 

Fundar-me. 

Fotografia: António Caeiro.
Texto: Rui Carvalho.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Summer series, n.º 6 - by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - XXII

XXII

Rui Carvalho: existe qualquer coisa de platónico no teu discurso, no modo como estabeleces a correlação entre o bom e o belo, entre os domínios ético e estético. Estando ambos os domínios estreitamente correlacionados entre si, o acontecimento da responsabilidade é, então, também um acontecimento maiêutico?

Sebastien Void: A arte é maiêutica. A experimentação artística é um acto impregnado na maiêutica. A gestação artística é vivida no contacto e o contacto é algo que nos é dado em chaga. Somente a arte nos pode tornar outros. Somente a arte nos pode fazer crescer, tornar-nos pessoas um pouco menos mesquinhas. Somente a arte nos pode tornar melhores pessoas. 
O Sócrates platónico não é somente o excelso parteiro de almas, o Sócrates platónico é sobremaneira o excelso artista. O parteiro das almas encaminha os espíritos e no encaminhamento são abertos novos mundos. 
O acto de caminhar não implica tão só o deslocamento de um lugar a outro. O acto de caminhar implica sobretudo um ganho de consistência. A cada passo dado tornamo-nos mais consistentes. No decurso dos passos dados há um constante treino da nossa consistência, sendo que esse mesmo treino é de igual modo um treinamento do nosso estado de consciência. A cada passo dado tornamo-nos indivíduos mais conscientes. 
Não habitamos lugares, habitamo-nos a nós mesmos. Preocupamo-nos em demasia com a nossa habitação exterior, quando o que nos deveria realmente preocupar é a nossa habitação interior.
Sim, a responsabilidade inscreve-se nessa correlação umbilical entre o belo e o bom. As civilizações contemporâneas perderam por completo o sentido dessa correlação. Na contemporaneidade o bom resulta de uma estrita obediência à lei, não estabelece qualquer interligação ao belo. Aos olhos dos outros somos tanto melhores quanto melhor cumprimos escrupulosamente as leis que nos são impostas. Contudo, a lei é-nos algo exterior, é algo que nos é imposto de fora, de fora para dentro. A lei não é algo que nos crie raízes. Somos os primeiros prevaricadores, somos os primeiros a incumprir a lei desde que ninguém o saiba, desde que ninguém dê por isso. Uma ética fundada no estrito cumprimento da lei não pode constituir-se como uma ética fundante. 

Pelo contrário, a arte funda-nos. A arte estabelece-nos na radicação. A arte cria-nos raízes. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Desertos - V - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho


Ser o sucesso do corpo; ser amado pelas jovens mulheres antes da noite chegando. Curvilíneo, em curva gravitar o vórtice dos dias; impacientemente percorrer o estrondo do mundo até ao enegrecimento da carne. Ser tangente. Ao contrário da paciência, ser a primeira e última vez de todas as coisas. 
Não esquecer nunca de envergar as sístoles e as diástoles como um troféu. 
Em queda. Ser em queda. Quedar-me quase exangue de mim e dos outros. Ser farto. Estar farto de tudo e de nada. Procurar as formas e, com as formas, enformar a matéria. 
Matar o tédio caindo em todos os precipícios. Cair. Cair e, de seguida, reerguer a queda. 
Ser a escalada das montanhas. Escalar montanhas com a dúvida às costas. Deixar depois a dúvida incrustada no cume, por cima da estupidez. 
De rosto descoberto. Descobrir o rosto para que as lágrimas vertam na nudez. Ser ao contrário da contrariedade do mundo. 
Deixar que as lâminas me cortem, que o aço incida minha carne. Tornar-me duro. Ser o aço por dentro. 
Não representar papéis além do estritamente necessário. Sobrevir a dor. Não deixar nunca que a discrepância transpareça.
Ser o aço por dentro. Não deixar nunca transparecer que assim não é. 

Jamais; não esquecer jamais que assim deve ser.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho