XLIII
Rui Carvalho: o advento do fim da história e a imposição do pensamento único como modalidade única de ser e de pensar é pois uma impostura hedionda.
Void: vivemos uma espécie de esquizofrenia quando, por um lado, achamos poder modular ou conformar a natureza à nossa própria vontade e, por outro lado, achamos que a realidade social não é mais moldável, que chegámos ao fim da história, que a história tem uma vida própria e que é a história que nos dita as suas próprias leis.
Há um clara distinção entre natureza e sociedade, entre o domínio natural e o domínio social.
As formulações sociais são ideológicas. Contrariamente ao que sucede com a natureza. Contrariamente aos que sucede com a natureza, que se rege pelas suas próprias leis, as sociedades humanas são realidades ideológicas. A realidade social humana é puramente ideológica. Ideias. As ideias são o fundamento da realidade social. As ideias, não os números. A realidade. A realidade social não são contas de somar e de sumir. A realidade social não se divide nem se multiplica. A realidade social vive-se. A realidade social vive-se através das ideias, não é uma equação matemática, é uma formulação ideológica. Ao contrário do apregoado, ao contrário do pregão neoliberal acerca da inevitabilidade, acerca da inevitabilidade dos factos sociais, a realidade social não é inevitável. A realidade social é mutável. A realidade social é aquilo que queremos que ela seja. Como se molda, como se constrói a realidade? Como se constroem as realidades sociais?
Acontece que o neoliberalismo é um processo que se funda na estúpida ideia da abolição da contradição do cerne da realidade. É essa a estúpida ideia que nos é vendida pelo ideário neoliberal. As contradições. A contradição abolida por decreto. Como abolir a contradição do mundo? O mundo. A mundanidade. O devir é a mais absoluta das contradições. A luta. Como abolir a luta do mundo? Como abolir do mundo o mundo? Como abolir do mundo a contradição? Sem contradição não há mundo. Não há mundo sem contradição. O mundo sem contradição é o não mundo. A existência. A existência é a mais radical das contradições. A vida e a morte. O mundo. A morte e a vida. Aqui e agora. O mundo. Vida e morte. Respiro? Não respiro? As contrações musculares. Até quando? As sístoles. As diástoles. Até quando? A vida. Até quando? A vida interrompida por decreto. Como interromper a vida por decreto?
Tal qual o comunismo, o liberalismo funda-se na mesma estulta ideia que um dia o mundo deixará de ser contraditório. Que a determinado momento histórico não mais existirá processo dialéctico e a própria história atingirá o seu fim. Por fim, a finalidade encontrará a sociedade livre de contradições internas. O culminar de todo o processo histórico. O que diferencia ambos os modelos é o facto de que para os comunistas a implementação do estado liberal não resolverá a contradição fundamental. A luta de classes. A luta entre a burguesia e o proletariado. O conflito. O estado liberal não resolve o conflito de classes. O estado liberal não significa a universalização da liberdade. O estado liberal é apenas a vitória da liberdade para uma classe determinada. A burguesia. A classe dominante. Por conseguinte, o homem liberal não é um homem livre. O homem liberal permanece alienado de si próprio. O capitalismo. O capitalismo controla o homem, alienando-o. O homem liberal é o homem tornado escravo do capital. O fim da história. O fim da história só será concretizável através da vitória do proletariado. O proletariado. O proletariado, a verdadeira classe universal. Somente a implementação da sociedade comunista poderá pôr termo à contradição, à contradição que resulta da luta de classes.
Pelo contrário, para o neoliberalismo o estado neoliberal é o santo graal, a concretização do céu na terra. É contra o inculcar deste estúpido estado de coisas que nos devemos rebelar.
Rui Carvalho, s. d.