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quarta-feira, 28 de junho de 2017

Sobre toda a escuridão - II - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



      Nascemos dentro de carruagens. Dentro das carruagens nos exercemos na fugacidade. É esta a primeira paisagem que vemos, o primeiro foco de sentido: as coisas fugindo-nos os olhos, como cometas. Contudo, os órgãos de equilíbrio possibilitam-nos andar sem cair, tornar-nos mais seguros a cada passo. 
Ao fim de muitos passos adquirimos a forma do caminhar. 
O caminhante é aquele que caminha. 
Há uma correlação ontológica entre o caminhante e o caminho que perfaz. Regra geral o caminho é-nos predeterminado, são as predeterminações que nos enformam na segurança. Na segurança todo o lodo se mostra plausível. É no lodo que nos deixamos seduzir. O equilíbrio ausenta-nos à vertigem. 
A carruagem segue o andamento das coisas, induz-nos no sincronismo. Adquirimos a noção que as coisas nos são síncronas. No sincronismo deixamo-nos acompanhar no delírio da certeza, de estarmos absolutamente certos no percurso que nos é dado percorrer. Toda a dúvida se revela então um empecilho no sistema. 
As carruagens seguem os trilhos da indubitabilidade.
Logo após a segurança atingimos a vanglória. Tomamo-nos de temor pelo desequilíbrio, pelo temor ao movimento durante um período prolongado de tempo.
Rodo sobre mim próprio com os olhos vendados. Assim atinjo a labirintite, a forma súbita da  vertigem, o processo infeccioso que afeta o ouvido interno. 
A náusea e o vômito são condições necessárias ao recobro. Sem a vivência do nojo jamais vislumbraremos a vagueza do mundo, que somos atrelados como sombras nos trilhos da indubitável certeza de nada haver a fazer, quando na verdade nada sequer ainda foi feito.   
Os objetos são algo em redor, algo que se mantém em constante movimento. Há toda uma  realidade vagando no vácuo. 

O sentido da vertigem, é aí que devemos cair. Sem o percurso da queda jamais vislumbraremos a possibilidade de nos ergueremos do chão.


Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

Orange Series, n.º 2 - by Steven Space


domingo, 25 de junho de 2017

Útero - II - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Segundo a escola de Kos, haveria uma correlação directa entre o aparecimento da doença e as precárias condições ambientais em que viviam aqueles que a padeciam. Assim sendo, o estado saudável dependeria do modo como se correlacionam o quente, o frio, o húmido e o seco; e o predomínio de qualquer um destes humores implicaria o estágio na doença. Talvez seja devido ao facto de sequer havermos verdadeiramente nascido que não nos apercebemos quão doentes somos. Sem quaisquer dúvidas e raros enganos, este extenso local desde onde nada se vê excepto o reflexo dos umbigos no espelho. 
As portas são fechadas no selo da ignominia e por detrás delas se escondem os códigos que permitem o vislumbre das coisas.
Somos aqueles que são frente ao desconhecimento, que frente ao desconhecimento anseiam o umbigo do mundo, o lugar desde onde tudo se desvela ou não. 
De qualquer modo, é fundamental que possamos munir-nos com uma pequena navalha. Incidir leves golpes nos vários pontos onde a dor enforma a doença. Começar depois а bater levemente nesses pontos соm а parte incisa dа lâmina. Aguardar quе о sangue surja. Em seguida colocar pequenas ventosas sobre os locais onde o sangue se revela. Colocar a própria boca nа abertura situada nа extremidade das ventosas e lentamente extrair о ar do ѕеu interior. Fechar hermeticamente a abertura desde onde se extraiu o ar e deixar a ventosa presa à pele. Esperar a remoção do sangue necessário. 
Em seguida, aguardar a reação do corpo, a febre indispensável ao cozimento dos humores em excesso. Deixar a physis seguir os seus mecanismos naturais até à expulsão do humor em excesso. Ou isso ou a contrariação das qualidades desnecessárias ao mundo. 

Tornar-se melancólico. Contemplar a melancolia até ao rebentamento dos tímpanos.  

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Sobre toda a escuridão - I - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Erigimos esta imensa prisão a céu aberto e escondemo-nos por detrás das grades. Seria expectável termos deixado os banqueiros de cabeça para baixo, enterrados no lodo até ao tutano. Mas, não. Os mais vis seres habitando este solo usufruem total liberdade no exercício da perfídia. 
Há uma lei a que chamamos lei da causalidade. É essa a mais poderosa das leis. Não as leis dos códigos. Códigos penais, códigos civis. Os códigos e as leis que os códigos ditam. Raios partam as leis dos códigos e o que elas permitem: que a riqueza fuja sempre para lugares paradisíacos.
Fosse eu um Cínico (um Cínico Grego, tal qual se deve ser) dir-vos-ia: a estupidez tem consequências, meus Amigos. Melhor dizendo: “Se não A, então não B”. 
Não fossemos abstrusamente estúpidos estariam os banqueiros presos e exerceria-mo-nos nós na liberdade. Dito de outro modo, a lucidez seria um requisito necessário à prossecução da alguma justiça. Sim, a alguma justiça, não a justiça total, a qual implicaria a erosão do mal. O mal, que tão só é uma condição natural do mundo. Sem o mal não existiria o bem, e, sem bem nem mal seriamos no âmbito do angelical. Há contudo mínimos exigidos para que o humano se exerça na decência e esses mínimos nunca foram cumpridos. 
Foi coisa pouca Jesus. Jesus e a expulsão dos vendilhões do Templo. Os vendilhões sabem muito bem como auto-multiplicar-se, a eles e ao comércio do engano.  
Acontece que deveríamos ser aptos a estabelecer não apenas a correlação significativa entre a razão da pobreza e a pobreza em concreto, mas essencialmente os reais mecanismos que permitem a perfídia, isto é, deveríamos ser certos que apenas a ausência de A poderá inibir a ocorrência de B. Não é suficiente sabermos tão só a razão lógica de um determinado fenómeno, seria essencial  perscrutarmos, apreendermos a sua inteligibilidade.
Em suma:
Não é possível extirpar a ganância do coração dos homens, mas é possível extirpar os homens abjectamente gananciosos do coração do mundo. 

Claro está, não fossemos estultos como pedras.

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho 

Breve tratado...

Icaro: voar, cair, voar, cair, voar, cair; cair, voar, cair, voar, cair, voar. 

Rui Carvalho, s. d.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Útero - I - Fotografia: Sonia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Desconhecemos a mecânica da cor, a quantidade de Sombra e Luz que permita o equilíbrio da realidade. O percurso cromático do mundo é uma condição abrangente, vai do máximo brilho à intensa penumbra. Tal facto depõe-nos perante a dificuldade extrema de nos sopesarmos. Tal qual o mundo, todos somos capazes do melhor e do pior, e, assim sendo, o equilíbrio seria pois qualquer coisa entre o bem e o mal. Ou isso, ou uma espécie de síntese dialéctica que nos possibilitasse ser uma qualquer outra coisa que não isto, qualquer coisa mais longe que esta carne e ossos por dentro da pele. 
É contudo por demais evidente sermos necessitados de cura. Uma cura radical, diria.
Em tempos idos, o sangramento da carne foi um meio de purga. Através do sangramento julgava-se poder curar o humano dos fluidos causadores das doenças do corpo e da alma. Qualquer coisa como uma tentativa de fazer igualar os humores e imiscuir-nos assim no equilíbrio. Deste modo, o equilíbrio quantitativo dos humores garantiria a aquisição qualitativa do bem estar.  
Também a realidade é qualquer coisa como sangue fluindo, sangue venoso e sangue arterial, chamemos-lhe assim. Seria então necessário que nossos olhos fossem aptos ao sangramento das paisagens, que desse modo as mesmas fossem vistas como devem ser vistas. Deveríamos ser aptos ao vislumbre do umbigo do mundo, esse estranho lugar onde os humores se equilibram. Ora, atingir esse feito implicaria um intenso treino na febrilidade. Deveríamos tornarmo-nos tão febris quanto a lava dos vulcões. Tornarmo-nos assim aptos à contemplação directa do sol, a cicatriz de onde o sentido brota.
O umbigo do mundo, o intenso lugar que nos prescreve a quantidade de Luz e de Sombra necessárias ao equilíbrio das coisas.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Desertos - XXXIX - First and Last and Always



São as máscaras que usamos que suportam o peso de sermos quem somos. Contudo, tarde ou cedo teremos que haver-nos com a crueza dos factos. A luz da noite irromper-nos-á os dias e as máscaras cair-nos-ão no desassombro. Saberemos então que nada resiste à temperatura do fogo, nem os homens de fatos de amianto retorcendo o aço, nem as mulheres que em casa os esperam com filhos de colo nos braços. 
Somos mais ou menos dúcteis, é certo. Diferimos quanto ao grau de deformação que nos é possível suportar, pelo menos até ao momento da queda; esse incurável precipício onde todos nos devastaremos. Atingida a temperatura de fusão os átomos dispõem-se de modo que a estrutura atómica irradie a possibilidade de deslizamento. Os átomos deslizam então uns sobre os outros, permitindo assim o estiramento da matéria. Há pois quem seja apto a estirar-se sem romper-se, a transformar-se na ténue espessura desde onde o espirito transcorre. 
Outros há que jamais se estiram, e, assim se gerem na necessidade dos muitos: revestir-se no incombustível asbesto, adquirir-se  na estúpida pretensão de resistir ao incomensurável arbítrio do fogo.
Contudo, as máscaras usadas apenas podem permitir-nos escapar à intensidade das chamas, jamais à asbestose, às incuráveis lesões do tecido pulmonar causadas pelo ácido exalado no interior do organismo. Esgotada pois a tentativa de dissolver as mortais fibras que nos jazem, as lesões tornar-se-ão tão extensas que nos impossibilitarão o funcionamento dos pulmões. 
Aguardemos então o período de incubação, a latência da doença. Aguardemos cerca de 30/40 anos:

A fragilidade no rasgo, o instante da ruptura.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 14 de junho de 2017

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Desertos - XXXVIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Mais coisa menos coisa, a adolescência foi a cem metros daqui - enrolando bobines de aço fervendo - descortinando no trabalho a sua estupidez genérica. Os homens indo e vindo, rotativamente, em turnos rotativos, sujos de um trabalho sujo. O pior que fica é essa experiência da igual soma dos dias, os dias somando-se sem nada que verdadeiramente nos importe ou acrescente. Apenas algumas queimaduras nos braços marcando a solidez dos ferros em brasa. 
O lugar onde meu pai nasceu, o cemitério onde jazem alguns amigos, alguns deles tendo acertado a vida em cheio, tal qual os elefantes se abatem na senda do marfim. 
Há noite a música saía da eterna garagem de um amigo, tudo no mesmo perímetro. A vida, a morte e o seu intermédio.
A adolescência foi a cem metros daqui, a cem metros da morte, a cinquenta metros de não se saber bem o quê. 
Haverá uma zona intermédia onde a vida se agita, desde lá até então. O sumo sai agora. É isso que importa: 
- que o sumo verta e que em cheio atinja o cerne do mundo;
- que os corações se gastem de tanto bater; 
- que o fumo dos cigarros se nos pregue nos pulmões;
- que o álcool me mine até à putrefação do fígado. 

A adolescência, esse amor para sempre!

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sábado, 10 de junho de 2017

quinta-feira, 8 de junho de 2017

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Desertos - XXXVII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Haverá sempre alguém que corre em contramão, alguém que deteste a finitude e detestando a finitude dure todo o tempo a apreende-la. 
De qualquer modo, a luminosidade dos túneis por onde o sangue passa é pelo menos tão intensa quanto isto. 
Apressamo-nos na fuga àquilo que somos, um desastre tão simbólico quanto o desrespeito pelos sinais vermelhos. Podemos sempre escapar-nos às multas por excesso de velocidade, mas jamais ao sangue que nos corre por dentro das veias. A determinada altura a pressão será tão intensa que a alma rebentar-nos-á por dentro das vísceras. 
É para isso que me preparo. Para saber cumprir a morte. Ouvi-la chegar de raspão, essa fracção de segundo que é tudo que somos. 
Pouca coisa resta dos lençóis de água onde um dia vibrámos os sonhos, pouco mais que a  precoce necessidade de seguir em frente. Ouvir o sinal de alerta e ainda assim prosseguir a marcha. 
Depois do sinal de aviso virá o trajecto do comboio. Ninguém esperará mim. Nem o comboio deixará de seguir seu destino, nem eu darei a mão a quem não quero. 
Não me restarão mais estações nem apeadeiros, tão só este precipício sem fim. 
Esta coisa tramada a que chamamos Vida. 
Haverá sempre quem morra em contramão, alguém que deteste a finitude e detestando a finitude dure todo o tempo a apreende-la.  

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 4 de junho de 2017

Desertos - XXXVI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Assim sou:
uma vida erigindo a passada, adquirindo o modo da velocidade não excessiva; este vício de nada querer de raspão. Qualquer outra coisa que não a precisão da dor de todos os ossos penetrando fundo. 
Esta estúpida pretensão: algo como a elasticidade dos segundos, que os segundos sejam elásticos, que me durem mais que o possível. A eterna ressaca de um qualquer conforto  contornando a embriaguez do desabrigo, esse algo que me permite ainda dormir, encontrar o sono, nem que seja um lugar mínimo, um par de horas que seja. Uma margem de segurança que me impeça de enlouquecer. 
Enquanto isso, os mecanismos do tempo fazem de mim cinzeiro. Tantas beatas que em mim se apagam. A imensidão das cicatrizes. Essa estrita simbiose entre a humana existência e a vida dos cinzeiros. A concisa estranheza nos objectos apagando beatas. Não, não essas beatas, não as beatas que vão à igreja. As outras. Aquelas que se fumam até ao tutano, que gangrenam nos pulmões dos fumadores. 
Há qualquer coisa de tóxico neste vício, nesta necessidade de fazer sentido da eterna repetição do mesmo. Uma vez não me deveria bastar para perceber que não vale a pena a oferenda de flores, que as flores são breves a murchar? Que nenhum sopro me salvará. Nada. Nada me abrigará das intempéries. 

Esta estúpida mania de transportar objectos simbólicos no pulso, nos dedos, no coração. 
Quando a intempérie se abater sobre nós nada nos salvará.
Meros poemas, uma qualquer musicalidade reflectindo o contrário do mundo.  

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho                      

sábado, 3 de junho de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Erguer da cama. Fechar os olhos o mais possível, permanecer assim o resto do dia. Abrir os olhos quando a noite chegar.

Rui Carvalho, s. d.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar.

Um imbecil que tenta ridicularizar os outros é alguém que nem a atenção dos espelhos merece.  

Rui Carvalho, s. d.