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quarta-feira, 29 de março de 2017

Desertos - IXX - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Demorávamo-nos tardes inteiras discorrendo ruínas. Isso mesmo e apenas isso. Era esse um tempo onde sequer olhávamos os jovens corpos, as mulheres deflagrando em redor. Interessava-nos perceber o funcionamento das coisas, como a matéria se corrói. 
Não é possível estudar o mundo e amá-lo ao mesmo tempo. Uma coisa de cada vez. 
Deixávamos assim o amor para mais tarde. Sorvíamos o vinho das tabernas. Tinto, sempre tinto. No fim havia quem nos resolvesse a prova dos nove. Um qualquer taberneiro antipático querendo ver-nos pelas costas. 
Uma dessas tardes houve a noticia de uma jovem turca visitando um amigo. Ambos chegaram onde nada havia, onde nada jamais houve senão vinho regado e filosofia, todas as outras artes impossíveis. Chegada ao local onde jazíamos, a jovem turca tentara perceber se ali era o Amor. Não, não era ali o Amor. São frequentes as confusões onomásticas, ainda mais para um estrangeiro.
Uma vogal a mais troca-nos sempre as voltas. 
Os pequenos pormenores. São sempre os pequenos pormenores que me tramam a vida. Eu, que distraidamente esqueço quem amo nos mais inusitados lugares e que depois me gasto o resto da vida a procurá-los. Que tropeçando nas letras me estatelo ao comprido. As vogais, as consoantes. Não, nada é consoante. Tudo é uma eterna cacofonia. Há sempre uma vogal a mais. É sempre essa vogal que impede o mundo de nos bater certo. 
Eu, procurando elidir de uma localidade o A vocálico que nela a mais é ou de um fruto silvestre o fragor do seu último som.
Sou dado a coisas inusitadas, ainda que nada aqui seja. Em Amora, este lugar junto ao rio.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 26 de março de 2017

Desertos - XVIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



  Uma porta que se abre, alguém que nos dá as boas vindas. Um estrangeiro aguardando o dom da hospitalidade. 
Desconheço a pertença a uma terra que não o mundo inteiro. 
Gosto de ouvir vozes, línguas desconhecidas, reconhecer-lhes a aridez dos sons, as cantadas desarmonias. Uma língua gasta-se, como qualquer outra coisa. Com o desgaste do uso as palavras perdem o seu peso intrínseco. 
Ao contrário do ódio, o amor é uma palavra gasta. Dizemo-lo tão dissimuladamente como dizemos: “vou ali mijar”. 
Partimos, chegamos, somos exactamente os mesmos. Bom, fisicamente não. O tempo deixa as suas marcas, algumas cicatrizes são irregeneráveis. Quanto ao resto há uma rotina. Chegamos dizendo amo-te, partimos dizendo exactamente o mesmo. Somos prolixos no mimetismo das proposições mais usuais. 
De tanto amor temos um mundo enterrado na perfídia. 
No amor se induzem drogas. No amor se traficam armas. No amor se vendem mulheres. Todo o dinheiro escondido nos indómitos paraísos, tão terrestres quanto nós. 
Uma porta que se abre abre-se para ser fechada. Entre o abrir e o fechar das portas há sempre duas certezas. Sabemos quando nela entramos, sabemos que nela não mais voltaremos a ser os mesmos a entrar.
Eu, repleto nesta enorme vontade de mijar.
Como a todos vos odeio, ó vil corja tecnocrata!

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sábado, 25 de março de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXX

XXX

 Rui Carvalho: Consegues definir melhor esse conceito de necessidade de verdade?

Sebastien Void: A necessidade de verdade é uma espécie de doença. Trata-se de uma inadequação que nos obriga a perscrutar indícios de certeza no domínio da incerteza.  O diagnóstico da patologia ocorre da verificação de um movimento de recusa. O doente de verdade recusa-se ser um mero espectador, um mero habitante passivo de um mundo fabricado. A artificialidade do mundo é dada em oposição ao denso semblante da natureza. Digamos que a natureza é cruel, pelo menos numa perspectiva humana. Trata-se de matar ou morrer, matar ou deixar-se matar. Perante a fatalidade da luta de morte que é constitutiva na natureza enquanto tal, o humano inventou a artificialidade. A artificialidade constitui-se como uma segunda pele, como uma espécie de camuflagem da natureza. É nesta tentativa de camuflagem da natureza que se erige a sociabilidade. O homem social recusa a fatalidade da luta, recusa a inevitável fatalidade da vitória do mais forte. No âmbito da sociabilidade o bom não é mais o mais forte, o bom é aquele que melhor se sabe camuflar. O âmbito da sociabilidade é um âmbito artificial. Bom, o problema é que a ambição humana é desmedida, desmesurada. A ambição humana extravasa todos os limites da razoabilidade, não raras vezes ocorre no domínio da mera loucura. Por vezes essa loucura é uma loucura colectiva que acomete não apenas um indivíduo ou um grupo de indivíduos, mas toda a sociedade. No limite da loucura aquilo que se pretende não é já uma mera camuflagem, ou a constituição de uma segunda pele. No limite da loucura aquilo que se pretende é domar a natureza, moldar a natureza ao gosto de quem a molda. Ora, esta tentativa de domar a natureza é uma tentativa insana. É claro que a natureza é indomável. Podemos precaver-nos ou minimizar os estragos de uma natureza em ebulição, contudo, é impossível agrilhoá-la ao ponto de fazê-la estritamente obediente aos ditames do humano. 
A realidade é o âmbito da incerteza. Somos habitados pelas areias movediças do quotidiano. As areias movediças do quotidiano são inseguras. A cada movimento somos lentamente soterrados numa espécie de conformismo. A recusa ao conformismo é um indício que estamos doentes. Somos tocados pela necessidade de verdade, e ao sermos tocados pela necessidade de verdade somos desde logo condenados à patologia do absurdo. A maioria das pessoas não tem sequer noção que é habitado pela incerteza. A generalidade das pessoas é conforme àquilo que é e à situação em que está. Traduzidas na ambição, as pessoas moldam-se ao meio ambiente. Também os nossos mundos são moldados pelo que ambicionamos, pelas nossas pequenas ambições. 
Aquele que percorre a necessidade de verdade é habitado pelo inconformismo, um inconformismo até à medula. O inconformismo brota precisamente dessa necessidade de verdade que tinge a vida do artista. Neste contexto o artista é sempre aquele que mais perto está das figuras do louco ou do criminoso. O inconformado está à margem. E está à margem porque quer estar à margem, é-lhe de todo impossível ser de outra maneira. O artista é o verdadeiro doente de verdade. 

segunda-feira, 20 de março de 2017

Desertos - XVII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



 Alimento-me de peixe cru trazido na corrente do rio. É fácil habituarmo-nos a viver com pouco quando tudo que queremos é ser ao contrário do mundo, pequenos barcos transitando o imenso mar. Precavi-me das intempéries secando o peixe sobrado. Após a secagem o peixe torna-se comestível durante um largo período de tempo. 
Neste barco transitei os rios, transcorri o avesso das águas até à nascente das coisas. Sim, fui ao contrário da gravidade. Agudo, no pretexto que me funda. Percorri planícies desérticas, caminhos que pudessem edificar-me, precaver-me da estupidez dos homens. Fui o rombo de minha carne. Saturei as feridas com as linhas da pesca. 
É este meu corpo. 
São estas as cicatrizes do tempo. 
Não há nada a fazer, as pessoas são o que são. Se as circunstâncias de minha vida fossem iguais às da geração do Minotauro seria eu o enclausurado no labirinto de Creta. 
Trar-me-ia então Egeu o periódico fausto de sete donzelas. Assim me julgaria feliz até ser dizimado por Teseu, aquele que após minha morte perderá seus amores de sempre; seu pai, o nobre Rei de Atenas, Ariadne, sua doce amada. 
Não há nada a fazer. É necessário percorrer toda a estupidez do mundo para que percebamos nosso valor. Alarves na ganância até ao vislumbre dos precipícios. Nada temei. Somos cadáveres adiados. 
Igualzinhos uns aos outros, sem nada por, sem nada tirar. 

sexta-feira, 17 de março de 2017

Entrevista a Sebastien Void - IXXX

IXXX

 Rui Carvalho:  Qual a correlação entre a necessidade de contemplação e a necessidade de verdade, há alguma correlação entre ambos os dispositivos?
Void: O ser a ser-se é realizado num modo disposicional. Somos as nossas várias disposições. O estar bem ou mal disposto é um indício do nosso estado de ser. As pessoas mal dispostas são mais perto do modo da contemplação. Estar mal disposto implica uma inadequação face àquilo que se é e à situação em que se está. Na contemplação estamos sós. A solidão é, por excelência, a modalidade do exercício da contemplação. A solidão é o estado daquele que contempla. A necessidade de estar só perante as coisas é um correlato da má disposição. O bem disposto é aquele que se leva e deixa levar. Levado no riso, o bem disposto é junto a todos os outros, como se todos os outros se lhe colassem à pele. O facto de todos os outros se colarem à pele do bem disposto implica duas ocorrências fundamentais. A primeira delas é o facto do bem disposto estar em constante rotação. O bem disposto roda em torno de si mesmo e em torno dos outros. Vive para espalhar a sua boa disposição. Além do mais, o bem disposto é já, e, desde logo, aquele que se dá numa disposição genérica. A disposição do bem disposto é uma disposição colectiva. A boa disposição é a amálgama onde todos estão. Ora, a partir da amálgama onde todos estão é impossível contemplar o que quer que seja. O estado de constante movimento é o estado característico da amálgama. Como contemplar um frame do que quer que seja em constante movimento? A contemplação, o exercício da contemplação, implica uma paragem. A paragem é um signo da radicalidade. Parado, o mal disposto deixa de acompanhar o estado vertiginoso da amálgama. No decurso da colagem de todos os outros à sua pele, o bem disposto torna-se um ser por ouvir dizer. O bem disposto ouve dizer que as coisas são tais como são, e esse ouvir dizer basta-lhe para sustentar o seu mundo. O bem disposto constitui-se no dizer que todos dizem, sendo que o dizer que todos dizem acaba por transformar-se no seu modo de vida. Ao bem disposto não se coloca sequer a possibilidade de necessitar de verdade. O bem disposto contenta-se com aquilo que tem, é alguém que está adequado às coisas, que gravita a coisalidade de um modo aproblemático. A necessidade de verdade é um dispositivo ontológico que brota da vivência de uma qualquer inadequação. É a partir da inadequação a uma qualquer situação que nos é dada a necessidade de ser para a verdade. O ser para a verdade constitui-se como procura, sendo que essa mesma procura equivale a uma constância no estar em espanto perante as coisas. A constância no estar em espanto pára-nos o mundo. É como se passássemos em câmera lenta os vários frames que nos constituem a realidade. Como se fossemos assolados pela necessidade de retirar a verdade dada em cada um dessa miriade de frames.  

domingo, 12 de março de 2017

Desertos - XVI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Aqui foi o esforço de crescer para além das coisas, essa necessidade de dormir ao relento. 
A isto se chama sair da Zona de Conforto. Um gajo gosta de outros gajos e logo temos mariquice. Os outros gajos chamam-se nomes que não recordo. Tarkovsky. Eisentein. Kubrick. Bergman. Tarantino. Dreyer. Leigh. Greenaway. Lynch. Todos os outros. 
É isso. 
Nomes estrangeiros, como tantos. 
A Zona de Conforto. Uma silaba, duas silabas. Três silabas e estamos longe. Tão longe que nem sequer nos vemos. 
Aqui foi! Aqui é! Aqui será, a Zona de Conforto. 
Não, não há outros planetas. Há telhas caídas e gente que não sabe sequer para onde ir. Há um precipício e imensas telhas caindo. Há gajos que batem palmas perante as telhas que caiem.
Ok, sejamos telhas caídas. Já agora, sejamos telhas caídas e este frio que nos vem desde onde não sabermos sequer onde é a Sibéria.
O raio do Homem! 
O raio do homem somos nós e o Tarkovsky. Nós e o grandesissimo Tarkovsky.

Puta que nos pariu!


sábado, 11 de março de 2017

Entrevista a Sebastien Void - XXVIII

XVIII

Rui Carvalho: a contemplação implica o desabitar da vertigem, sendo que essa desabitação corresponde, por outro lado, à constituição de uma necessidade ontológica fundamental, a necessidade de contemplação, é isso? 

Void: a contemplação ou o seu exercício implicam um esforço para permanecer, para estar perante as coisas. A perantidade é um local que se conquista. O habitual é a velocidade, que passemos pelas coisas de uma forma veloz, a uma velocidade estonteante. Também o mundo tem as suas várias velocidades. Contudo, com a advento da globalização económica e social tudo tende a ser mais ou menos o mesmo, a ter exactamente a mesma velocidade. É diferente a velocidade com que se vive no campo e a velocidade com que se vive numa grande metrópole. Os tempos são completamente dispares. No campo o tempo corre mais lento. Corre mesmo. Ainda que os segundos passem exactamente com a mesma velocidade, quer num quer noutro lugar. Não obstante esta diferença entre os vários tempos do mundo, a temporalidade é igual em todo o lado. A temporalidade perpassa o mundo, tornando-o uma realidade unívoca. Quer o sintamos no modo da lentidão, quer o tenhamos no modo da velocidade extrema, sentimos que o tempo passa. Este sentir da passagem do tempo é uma realidade universal que colhe todo e qualquer humano. É isso a temporalidade, sentir a passagem do tempo na carne. O sentir da passagem do tempo torna-nos mais atentos, como se quiséssemos preservar cada segundo, preservá-lo como um instantâneo em nossa memória. Ao visar as coisas, a nossa mente funciona mais ou menos do mesmo modo que uma câmera de filmar. Vislumbramos vários frames. É a junção dessa miriade de frames num módulo de sentido que nos erige como pessoas, como individualidades com uma identidade própria. Os frames visados variam de pessoa para pessoa. Se houvesse a possibilidade de dois seres visarem exactamente a mesma série de frames no decurso das suas vidas seria enorme a probabilidade de ambos serem exatamente a mesma pessoa. Não a mesma pessoa na carne, mas a mesma pessoa na alma ou na memória.  
Trata-se de nos exercermo-nos no modo da fotografia. Trata-se de conseguirmos permanecer no mesmo frame o tempo necessário a podermos dissecá-lo. Acho que é a isso que chamamos contemplação. A perantidade, a permanência perante as coisas até que as mesmas se nos integrem. Até que as coisas adquiram a forma de uma paisagem, de uma paisagem em nós. Na contemplação adquirimos a forma da paisagem. É essa aquisição da paisagem em nós que possibilita o visar das coisas tal qual elas são, não apenas como objetos dados na exterioridade, mas como exercícios do ser. Na contemplação tornamo-nos o sendo, tornamo-nos o ser a ser-se.