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domingo, 30 de julho de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - III - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Tal qual a chuva, cairíamos da previsibilidade de nossos corpos, embarcaríamos terras distantes, essa longínqua viagem por dentro da pele. Somos da estirpe dos que não ficam. O amor encurrala-nos até ao aperto do coração e de corações apertados decidimos seguir em contramão. 
Quando amanheceu já o frio se fazia. O intranquilo amanhecer da paisagem era o primeiro  indício da queda. Atravessáramos a noite discorrendo anjos e demónios, o amor que tende a partir deixando atrás de si o longo rasto da intempérie. 
Acreditamos nos Gregos perto do Olimpo, Teseu perdendo Ariadne por mera distração. Sim, nossos gestos são a língua de Egeu e Antígona, todo o simbolismo da perda. 
Tornei-me mestre neste jogo, perdedor até ao âmago da incerteza. Em todas as perdas reencontro tua linguagem, essa tenebrosa beleza enlevando-me os olhos. Somos gente perigosa. Em nossos olhos jaz toda a incerteza das coisas. Durei dias, meses, anos aperfeiçoando a visão do alvo. Fiquei sentado durante décadas aguardando o momento oportuno, o instante que me revelasse uma pequena fragilidade, uma pequena fresta em redor do coração. 
Há momentos em que adquirimos o poder de destruir a vida de alguém com o pronunciar de uma só palavra. 
Sou contudo incapaz de exercer o ódio.
Haverá um olhar furtivo diante do qual não nos veremos, apenas isso. 

Nada mais diremos, nem sequer adeus.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sobre toda a escuridão - IV - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



  Este seria o caminho… As pedras seriam purificadas e o solo abalaria nossos pés.
Libertar-nos-íamos das arestas. Seriamos carcomidos pelo fogo até atingirmos o limite da paixão. 
Jerónimo caminharia connosco, os proscritos.  
Em nada me interessa a economia do mundo. Nada excepto os frutos secos, as íngremes paisagens cortando a respiração, a aprendizagem desse salto tornando-me maldito. 
Que as vozes entrecortem a visão deste silêncio. Que minha mão se torne escrita. Que nela ecoe um sopro vindo de longe, da inóspita lonjura onde lentamente Jerónimo enlouqueceria.
O deserto calcídico, a sudoeste de Antioquia.
Roma é já um lugar distante, essa longínqua cidade onde aprendi a mestria da multiplicação dos orgasmos, onde as mulheres que possuí me foram dadas na mais intensa e espasmódica alegria. Aí, junto ao prodígio de Stridon fui mestre na oferta do prazer.
Contudo, a mundana alegria das mulheres que possuíra jamais de mim elidira a mais agreste e profunda tristeza.

Jerónimo, o Homem, tocando a maldição!

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

terça-feira, 25 de julho de 2017

Útero - VI - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho


       
Não, não somos nada, nem o nosso destino nos ocorre nem poderemos dar qualquer destino ao destino dos outros. As manhãs não frutificam, jamais frutificaram; interrompidas pela sede das coisas estilhaçam-nos agora nesta febre. Brindemos pois o Sol como quem brinca com a poeira, essa efemeridade das coisas. 
Somos perdidos entre os dias, desde a epifania da pele até ao silêncio dos crepúsculos. 
Ainda assim, são tão lindas as mulheres povoando-se na transparência. Os vestidos subindo-lhes as pernas até ao lugar dos afectos. 
Vermelhos, os decotes escorrendo-lhes até aos seios. 
Não, não há claridade que nos revele nossa tez, nada mais que o obscuro equilíbrio do tropeço. Caminhamos várias direcções, as várias cores que nos elegem; longas estradas onde o gelo ainda nos arde. Somos em redor de nossa pele, uma eterna fuga ao suplicio de não saber onde ficar. Como faquires, treinados no ilusionismo, levitamos os pregos do caixão, as almofadas dormindo-nos os ossos, tolhendo o impacto dos projécteis em redor.  
Deixei o amor para mais tarde, esse reino que jamais foi meu. 
Os vidros podem estilhaçar-nos a vida, todos os ecos vibrando desde longe. Tudo pode ser estilhaçado, tudo. 
Tudo excepto a grandeza, o que poderíamos ter sido.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

domingo, 23 de julho de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - II - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



  Eis o esgar da transparência, a fugaz distensão que antecede o enamoramento.
  Somos educados para olhar o solo, para esquecer os lugares de frutificação - os ramos onde as flores darão fruto. Arrancados à capacidade de voar seguimos destino nenhum, a inanidade deste chão.
  Frequentamos distintas frequências de onda. São as frequências de onda que nos distam, de nós mesmos e de todos os outros.
Ou não.
Herdamos a ignorância, de geração em geração. Todos os atavismos.
Contudo, somos seres adaptáveis. Enquanto tal deveríamos adquirir-nos na forma do voo, na magia da fuga aos predadores. A adaptação trouxe-nos aqui. Poderia ter-nos levado a qualquer outro lugar.
Eis-nos, criadores dos lugares que habitamos. Deixemos pois os lugares comuns. 
Distanciemo-nos. 
Distanciemo-nos para que a distância nos revele. Até que nossa única comunidade seja a comunidade da queda.
Tal qual as aves sobrevieram os dinossauros, nós sobrevir-nos-emos.
Enchamos os balões de ar quente até sermos perto de Ícaro.

Serei prestes a rasar o chão. Como uma ave, 
                                                                 cairei a pique. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Faz-me conhecer teus amigos. Após, serei teu amigo; ou não.

Rui Carvalho, s. d.

Love songs to no one else - XXVII

XXVII

Desde longe te escuto toda esta água escorrendo-me os olhos. Todas as lágrimas inscritas neste mesmo lugar. Chegando-me onde me parto, partindo-me desde onde me chego. 
Desde onde os navios nos partem, aqui miro o horizonte. Partindo e chegando, a cada dia. Neste cais onde junto a ti me sou. Aqui, onde te olho sem que meus pés se movam. Neste mesmo lugar me rasgo para que a ti te alcance. Cada partícula transposta na ânsia de te trazer.
Conheço-te tão bem. 
Conheço-te tão bem os passos que em cada silêncio te ouço chegar. Julgo então abrires-me as portas deste silêncio, escancarares-me as janelas por onde antes entravas. Regressares-me esse longínquo tempo onde de novo seremos prenhes de possibilidades.
Tua beleza em contraluz, meu amor. Aqui, onde o mundo me recomeças. Tu, que me és entre mim e o sol. Peço-te, não te afastes! Fazei com que me jaza nesta luz teu corpo. Neste instante. Neste lugar onde me reflito o fálico desejo de te ser. 
Eu, condenado à tua sombra. Que para onde quer que vá te olho. Não te afastes, pois quando te afastas levas-me todo o mundo contigo. Sem teu sol sou só eu. Tão pouca coisa adornando-me esta carne, estes ossos e nervos cravados nas veias. Um coração que acelera e pára consoante teus olhos me olham, ou não. Tu. Tu que me vestes o sombrio corpo durante as frias noites de inverno. Essa incorpórea paisagem onde me trazes noticias do amor, do milenar desvelamento dos corações em queda. Eu, que me torno apto a todas as acrobacias, que no funambulismo me moldo para ser teu. 
Meus pés que me ardem a caminhada até ti, o frio arame que estes passos me sustenta. A surpresa. O truque da surpresa. Apreendo a arte do surpreendimento para que o mundo não mais nos sucumba.   
Conheço-te tão bem. 

Conheço-te tão bem os passos, meu Amor. 

Álvaro Cunhal, s, d.


terça-feira, 18 de julho de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Voarmos assim as paisagens. Sermos voados pelo vento; tornarmo-nos perto do que deveríamos ter sido.

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 16 de julho de 2017

Tale of a man who whispered to the flowers - I - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Seria necessário o rompimento do céu para que voltássemos a ser felizes, a reversão do mundo a Eva e Adão. 
Entretanto, somos unidos pelas serpentes, facto que não é coisa pouca.     
O fruto do pecado estala-nos os estômagos quando nos aproximamos da unidade e ainda assim é fundamental persistir na visão das coisas apenas na sua transparência. Essa é uma necessidade básica, ser a vida voada perto da velocidade extrema. 
A minha filha diz-me ver os antepassados e que haverá um tempo em que todos seremos juntos. Nada como a sabedoria das crianças, inteligentes como pequenos deuses.
Contudo, os homens tornaram-se bestas de grande porte, estultos como todo o lixo que nos cerca. Espero que, no mínimo, haja uma purgação, que do lixo que aqui somos nada reste.  
Nunca nada me tocou, nada excepto as intempéries. Espero assim não ser junto à podridão, que Caronte, filho da Noite, continue reinando sobre as águas e que mesmo após a morte os rios permaneçam dividindo os mundos. Que as águas impeçam a estupidez de nos colar os espíritos. Que nenhuma vã moeda sirva para pagar o trajeto. Que seja fundamental transportarmos algum ouro junto a nossos corações e seja essa a única moeda de troca.  
Cruzamo-nos, como barcos sem destino, como se aguardássemos a voz do timoneiro. 
O futuro é agora. Sempre foi. 
E cada passo dado em direcção à beleza é mais um tiro tombando a escuridão. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sábado, 15 de julho de 2017

Útero - V - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



É a perecível beleza das coisas aquilo que mais nos indicia no abismo. Não, não se trata de rugas e do fenecimento dos corpos, mas de saber que sempre que uma porta se abre há um mundo que atrás de nós se fecha. 
Seguimos as portas abertas, a solidariedade abandonada ao fenecimento, toda a beleza do mundo soterrada no engodo. 
Sim, Hamelin é uma longa estrada que nos enrola o pescoço, uma espécie de cordão umbilical do qual não nos cortámos ainda. 
Seguimos o encantamento do flautista, as notas ofegantes de quem busca algum sentido. 
É este o problema: ser a polis infestada de ratos. 
As cidades são infestadas de ratos e os esgotos seguem-nos todo o caminho. Ao contrário da fábula, a hipnose traz-nos a infestação para dentro das cidades. 
Após os campos, são agora as cidades minadas pela peste, esta estúpida gente que deixamos nos governe.  
Ratos de esgoto - esse é seu nome. 
Não. Os ratos não foram afogados no rio e a culpa é só nossa. Fomos cegos para as vozes que deveríamos ter ouvido e assim tornámos o rio Weser um esgoto a céu aberto.
As crianças abandonaram a cidade, trancaram-se nas cavernas para de nós se protegerem. 
Tornei-me este maldito manto de silêncio e tristeza:
muitos ratos 
criança nenhuma.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

terça-feira, 11 de julho de 2017

Útero - IV - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Apreender a técnica para girar até à possibilidade do polimento, a transmutação deste lugar num lugar vazio. Adquirir a forma da vagueza. Ser vago, tanto quanto possível. Atingir assim o cerne da necessidade de repleção. 
Chamar a si a atração gravitacional, a repercursão do prodígio galáctico nas circunstâncias moleculares. O humano e o divino centrando o universo, girando o mundo até à plenitude da ausência. 
Entre a cabeça  e os pés, a continuidade do giro. 
Girar no sentido horário. 
Após várias voltas, levantar a palma direita da mão e abaixar a palma esquerda. Deixar o céu incidir na palma direita para que possa perpassar o corpo. Centrar-se no centro da terra e aí adquirir a forma da instrumentalidade, deixar ser-se um mero instrumento. 
Deus - o poder que entra é idêntico ao poder que sai. 
Trocar a posição dos braços, inverter a direção para a esquerda, no sentido anti-horário. Deixar o cérebro girar, também em círculos. Os círculos que a cabeça executa devem ser executados na direção inversa à das voltas do corpo.
Executar uma série completa de mudras até atingir a plenitude da respiração, o controle da velocidade dos giros.
Tornar o corpo o local onde a energia flui, a sensação de darshan desde o centro da terra. O divino, entre a Terra e o Sol. As estruturas moleculares, os campos energéticos centrando o Universo.
O domínio. 
Ver algo é tornar-se esse algo. Adquirir o modo do vislumbre. 
Girar pois até à ausência de si mesmo. Tão só a ausência de si pode abarcar o ser universal. 
Adquirir a forma de uma casa vazia. Adquirir-se assim à possibilidade de tornar-se uma casa cheia.

Sema, a busca por Deus, a verdade - girando.

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Termos sossego, por fim. Sentarmos as tardes em nossos colos para que ouçamos o chilreio das aves. 

Rui Carvalho, s. d.


sexta-feira, 7 de julho de 2017

Sobre toda a escuridão - III - Fotografia: José João Loureiro; Texto: Rui Carvalho



Parar de crescer, o primeiro passo. Não permitir que as obrigações sociais nos minem ao ponto de subverter-nos à mera factualidade. Estabelecer o equilíbrio no ponto de equilíbrio e aí permanecer. O primeiro passo. O primeiro passo é dado de encontro ao mundo, de encontro à factualidade do mundo. O primeiro passo consiste em saber que por detrás dos factos existem ideias, que são as ideias que sustentam os factos. 
Por conseguinte, as sociedades são o que são e tal qual são porque alguém as idealizou assim. O primeiro passo consiste em perceber que existe uma realidade natural e uma realidade social. À realidade natural temos que nos adaptar o mais possível, viver em consonância com os factos naturais, o mais possível. Quanto à realidade social, essa é uma realidade que apenas depende de nós, do modo como idealizamos o mundo. É esse o primeiro passo, percebermos que não existem inevitabilidades. As inevitabilidades sociais são falácias que nos pretendem fazer tropeçar, que pretendem fazer-nos cair no engodo da pós-história. Apenas as inevitabilidades naturais são quase irreversíveis. As catástrofes sociais são da nossa inteira responsabilidade. 
Assim sendo, depende de nós tornamo-nos a natureza morta que quisermos ser, frutos apodrecidos até não ter retorno ou o vicejar por entre as chamas.
De qualquer modo, a defesa do capitalismo é algo que resulta da nossa incapacidade para perceber o mundo ou isso ou o facto de sermos gente absolutamente abominável. 

Fotografia: José João Loureiro
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Love songs to no one else - XXX

XXX

Assim direi:  
que o pecado nos seja rente, tão rente que os lábios nos queimem, que os corpos nos ardam a vontade de sermos únicos até ao milagre. Em teu corpo descreverei algo longo, algo como a possibilidade de teu odor preenchendo o vazio, o doce cheiro das planícies vicejando o tão perto estar de ti. 
Um passeio de domingo no mais concorrido jardim ou a nudez dos corpos na mais bela praia, nada me esquece de ti. Teu lugar é onde qualquer gesto te celebra, onde qualquer face te recorda. Nada me esquecerá o prolongar de teu corpo no meu, esse milagre da unicelularidade.
Direi: 
se formos agora imensos, se-lo-emos para sempre. 
Voltarei a dizer: 
nada importa. Nada importa, excepto querer-te tanto. Olhar em redor e nada ser sem ti. Haver só este deserto onde toda a vida é povoada. Toda esta luz, alongando ou fenecendo consoante tu o queiras. 
Assim direi:
este é o sentido do mundo, ainda que dado na contramão. 
Onde quer que vá me acompanhas, mesmo quando sombra arrastando-me os passos. Toda a luz que me és, não apenas no parto dos corpos, sobremodo no alongar do espirito. Algo que alongue, que delongue nossas vidas, o afloramento dos limites do possível, até à impossibilidade.  
Digo:
faz-me erguer o sol junto à planície de tua pele, teu corpo junto a meu colo. 

Álvaro Cunhal, s. d.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Útero - III - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho


Os olhos vendam-nos as mãos, de modo que nada mais toquemos para lá das aparências. 
Assim nos limitamos aos lugares comuns. De olhos abertos e mãos vendadas calcorreamos este chão sem tocarmos os corpos que nos jazem. Somos o desdém ao poder do sopro. Trocamos o sopro pelo toque do ouro e é esse o peso que nos venda.
Entretanto, Baco procura-nos Sileno, o velho bêbado perdendo todos os caminhos. Meu pai, ausente no reino de Midas. Dele herdei o dom do descaminho, perdendo-me todos os lugares para que assim me reencontre. 
Somos as escolhas que fazemos, são as nossas escolhas que nos condenam à fome na abundância dos castelos que habitamos. As árvores e os frutos tornados ouro, o pão e a água enrijecidos na dureza dos metais. 
Somos cegos de riqueza e cegos de riqueza adquirimos o dom da morte por inanição.
Somente o vinho escorrendo nos desfará a petrificação de nosso toque. 
Ergo agora o jarro, após tê-lo enchido do divino néctar. 
Somente após o vinho serei retomado no amor, esse eterno caminho para casa, entre a flauta de Pã e a lira de Apolo; toda a música soando este silêncio. 

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

sábado, 1 de julho de 2017

Breve tratado acerca da arte de jardinar,

Saber escolher ou primeira regra para evitar a soberba: entre um jantar com juízes e um jantar com as senhoras da limpeza, seleccionar o local que mais rente à verdade esteja.

Rui Carvalho, s. d.