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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Tremendo

Se de ti me acercasse 
e o mundo em nosso encontro viesse

fora o mundo outro 
que não irrisórios dias 
e daninhas ervas crescendo 
junto aos parapeitos
entre casas inabitadas, 
entre vociferações e silêncios,
então ouviria teu sorriso e nele me iluminarias 
o chão 
tremendo sob meus pés.

domingo, 30 de outubro de 2016

Summer series, n.º 1 - by Steven Space


A kind of poetry - por Rui Carvalho


A dor virá

Entre eu e mim
                          o balanço derramado,
                          espécie de vertigem que me inadequa 
a vida
           inspiro, expiro
                                    desregulada, a respiração
                                    antecipando-me o choque, 
                                                                               frontal
a areia, estalada sob o calor intenso
até ao subsolo    
                        tremendo no abalo,
a vida                                                                         
           expiro, inspiro

um pouco mais tarde 
as ruas abertas, a golpes de machado
                                                            desesperando
                                                            a tentativa de fuzilar o Tempo.

Assim me indicio na fuga,
                                            o horizonte 
                                                                apartado a minha cintura, 
                                            de modo que 
                                                                  as árvores não mais me dancem
as sistoles, as diástoles
                                      inspiro, expiro
                                                              a vida.

De qualquer modo, a dor virá, 
                                                 de qualquer modo,
                                                                                a dor será intensa
                                                                                a dor tornar-me-á insuportável

                                                                                o nauseabundo cheiro das artérias 
                                                                                rebentando o sangue em mim apodrecido.
  


sábado, 29 de outubro de 2016

Twighlight series, n.º 1 - by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - VIII

Entrevista a Sebastien Void

VIII
       Rui Carvalho: Referes o quotidiano como uma realidade pantanosa. Referes também o modo como nos podemos edificar, mesmo nas areias movediças da quotidianidade. Contudo, nem todos os indivíduos são lançados no feito da edificação, é mesmo extremamente exíguo o número de pessoas dados à aprendizagem da arte da navegação. Qual a razão da exiguidade desse número? 
Void: O quotidiano é constituído naquilo que nos é habitual, é aquilo que nos é presente na nossa vivência diária. Além do mais, o quotidiano é-nos pre-determinado. Somos jogados nas pre-determinações quotidianas. Dai resulta a evidência de um lugar de areias movediças. O quotidiano é pantanoso. E é pantanoso essencialmente por ser o lugar que nos atola. Somos atolados nos afazeres quotidianos. Como crianças buscando brinquedos. Somos como crianças buscando brinquedos. Andamos em busca. Sendo que essa mesma busca se nos constitui como rodopio. Somos rodopiados como bestas buscando cenouras. Em torno da nora. Rodamos em torno da nora. Rodando em torno da nora enchemos os alcatruzes. Há seres humanos que parecem ter sido gerados para o feito de encher alcatruzes. A imensa maioria dos humanos é “feliz” na “arte” de encher alcatruzes, ainda que a água armazenada nunca lhes tenha sequer vertido nas gargantas. Nem uma pinga. Nem uma gota sequer. A imensa maioria é “feliz” na pre-determinação. A sua felicidade resume-se em atingir tudo o que todos atingem. Os mais ambiciosos ambicionam um pouco mais. Os mais ambiciosos passam por cima dos menos ambiciosos. Assim se gera a amálgama. A amálgama poderia ser descrita como “tanta gente feliz vendo novelas”. Os muitos vendo novelas estão atolados. Mais que estarem atolados, são atolados. Já não saem dali. Dê por onde der. 
  Contudo, o quotidiano pode também apontar à relação espaço-temporal na qual se dá a vivência quotidiana. É no apontar dessa co-relação entre espaço e tempo que se constitui o nosso estar no mundo enquanto seres para a preocupação. Na quotidianidade podemos ser exercidos no modo da ocupação ou podemos exercer-nos no modo da preocupação. No decurso do nosso estar no mundo, o quotidiano pode constituir-se-nos como um qualquer outro objecto, ou melhor, o quotidiano é, por excelência, o local onde nos podemos exercer face a face para com os objectos. A experiência quotidiana pode, no entanto, ser uma experiência autêntica ou uma experiência inautêntica. Somente é uma experiência autêntica quando nos exercemos no modo da preocupação. Na preocupação exercemo-nos perante a autenticidade da experiência quotidiana. A preocupação é um fenómeno que deriva do nosso estar a lidar com a experiência quotidiana de um modo autêntico. Preocupados exercemo-nos de modo autêntico. A arte da navegação é apreendida na autenticidade do estar a remar contra as marés do mundo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Partida

Sentava-me os longos meses que em setembro me chegavam 
minha vida tocada pelo fogo 
pelos rios após o verão

rente a mim se erguiam muros
dentro das casas
por dentro das casas habitadas na tristeza

 nunca soube permanecer
sempre fui falho no dom da permanência
partir
sempre tive que partir
partir sem sequer olhar para trás
partir um caminho desembocado na lonjura

separar-me inverno adentro 

para sempre!

como sempre!

domingo, 23 de outubro de 2016

Blue Angels series n.º 2 - by Steven Space


O compasso. Cada compasso. Cada compasso é o relato do mundo. O compasso. Os passos dados em conjunto. A marcha. Os passos dados em conjunto constituem marcha. Marchando. Marchando lado a lado. Dois corpos marchando lado a lado. Em conjunto. Os corpos marchando em conjunto enformam a dança. Na dança se liberta o medo. A toxicidade do medo é liberta na dança. Na dança somos livres. Libertos. A dança liberta. A dança. A dança exige escuta. Escutando exercemos a dança. Os passos de dança são compassados. Cada pé no seu lugar. Em cada lugar do passo dado é cumprido o tempo. O tempo no espaço. O espaço no tempo. Dançando. Dançando se mima o mundo. Tempo e espaço. O tempo e o espaço acolhem a matéria dançante. A matéria vibra no tempo e no espaço. Porque parámos? Porque parámos de dançar? Desde cedo. Desde cedo parámos de dançar. Desde cedo nos tornámos consentâneos com o não mundo. O adestramento. O adestramento social constitui-nos no não mundo. As tarefas. Adestrados cumprimos tarefas. Adestrados tornamo-nos cumpridores de tarefas. O não mundo. A técnica. O não mundo joga-nos na tecnicidade. A tecnicidade atola-nos. Atolados encontramo-nos impedidos de dar passos. Não damos passos. Deixamos de dar passos. Os passos são-nos dados. O não mundo obriga-nos os passos. Automaticamente. Como marionetes. Os cordéis da marionete são manobrados. A cruzeta. O principio da manipulação.  Do principio ao fim, nossas vidas são manobradas na cruzeta. Os cordéis provindos da cruzeta são contrários ao mundo. Na cruzeta não escutamos o compasso do mundo. Na cruzeta cumprimos o compasso da cruzeta. A cruzeta constitui-nos no não mundo. 

Os passos. 

Os passos do viandante são contrários aos passos da marionete. Somente o viandante dá passos. O fantoche executa. O fantoche executa tarefas para as quais foi adestrado. O executor de tarefas. O fantoche é o mero executor de tarefas. Somente o viandante está apto para a dança. O viandante rompe os cordéis. De rompante. O viandante irrompe dos cordéis que o ligavam à cruzeta. Rompendo os cordéis o viandante está apto para a dança. Dançando. Dançando o viandante acolhe o mundo. O viandante vive dançando. Mesmo que não saia do mesmo lugar. Mesmo sem sair do mesmo lugar o viandante dança. A dança é o inicio da viagem. Dançando. Dançando se inicia a viagem. A dança é o principio da escuta. O mundo escuta-se dançando. Dançando se é matéria. Incandescendo. Largando luzes noite fora. As luzes. As luzes iluminam a escuridão. As luzes iluminam a penumbra. A penumbra é incandescida pelas luzes. Pelas luzes da matéria dançante. A matéria dançante fulmina o não mundo. Fulminado. Fulminado, o não mundo torna-se mundo. O mundo criado na dança apaga a memória do não mundo. O não mundo não dança. O não mundo dança-nos. Só o mundo dança. Somente a dança cumpre o desígnio da matéria dançante. Lado a lado. Dançando lado a lado cumprimos o desígnio da  matéria dançante. A matéria dançante dançando o tempo e o espaço. 

Dança-me, meu amor.

Dança-me!


Como a primeira vez.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - VII

Entrevista a Sebastien Void

VII

Rui Carvalho: O projecto de edificação do humano não admite derivas. Há uma premissa fundamental que tem que ser preenchida quando nos pretendemos erigir. É necessário que encontremos chão firme,  alicerces que nos fundamentem. Onde encontras esses alicerces?

Void: De facto, só nos podemos erigir em terra firme. As areias movediças do quotidiano são um terreno impróprio para o erigir do que quer que seja. A edificação implica o abandono das areias movediças. Contudo, o abandono da quotidianidade é uma tarefa difícil, hercúlea, por vezes. Até que ponto nos é suportável o abandono da quotidianidade? O abandono puro e simples é uma tarefa impossível. O abandono é uma tarefa impossível, a não ser que estejamos perto da santidade. O truque. O truque passa por sabermos adquirir a capacidade de ganhar lastro. Ganhar lastro. A edificação implica que saibamos ganhar lastro. Ganhando lastro é-nos possível sobreviver as areias movediças. Trata-se de nos tornarmos aptos a navegar o quotidiano sem que sejamos tragados nas suas areias movediças. Os riscos são imensos. O quotidiano é pejado de armadilhas. Somos rodeados de armadilhas. As armadilhas são por todo o lado. É indispensável que estejamos aptos a nos moldarmos a atmosfera que nos rodeia. Somos seres atmosféricos. Lidamos com paisagens. Somos seres atmosféricos lidando com paisagens. As paisagens tocam-nos de diversas maneiras. Quando refiro o termo paisagem refiro o conceito alemão de landshaft e não o termo francês paysage. O termo paysage refere a noção de região com uma determinada homogeneidade física, onde se regista a história e o acontecer da história. A paysage regista as várias actividade históricas, derivem elas de acontecimentos naturais ou de actividades artificiais onde pulula a mão humana. O termo paysage implica pois uma relação, digamos que, factual com a realidade A paysage é aquilo que nos é dado no olhar, sem mais. Já o conceito alemão de landshaft não limita aquilo que nos é dado desde logo no olhar. A landshaft é uma realidade que nos é conquistada com a visão. A  paisagem não é pois meramente aquilo que que nos é dado no olhar as coisas. A paisagem não é uma mera cena ou cenário. A paisagem é algo que nos afecta de modo disposicional. Na paisagem é como se nos espraiássemos. Ao sermos espraiados quase há uma simbiose entre nós e a paisagem. Tornamo-nos seres paisagísticos. Paisagísticos e atmosféricos. A paisagem é a aquisição do fenômeno espacial no tempo do indivíduo, de cada indivíduo. A aquisição de um fenómeno espacial no tempo implica o acontecimento do toque. Somos tocados. A experiência do toque constitui uma categoria ontológica fundamental. É indispensável que nos saibamos ganhar lastro. Ganhar lastro para que nos possamos alastrar. A única terra firme que podemos encontrar é o navegar das areias movediças. A navegação em areias movediças é o único fundamento possível. É fundamental que nos saibamos navegar. Sabendo-nos navegar deixamos de correr o risco de nos deixarmos navegar à bolina. A aprendizagem da arte da navegação é pois o chão firme que me regula. 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

A kind of poetry - por Rui Carvalho

Setembro

Em setembro havia um lago onde aguardava teu regresso
era mínima a distância 
envolvendo nossas bocas
e
entre margens cresciam-nos as pontes

lado a lado
nossos ombros circunscritos no rasgar da dúvida
coagidos pela pressa de tudo que havíamos a ser

funâmbulos nos íamos
entre o fim e o início
a foz dos rios desaguando os lugares onde nascíamos

duplos

quase perto da unidade.

domingo, 16 de outubro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - VI

Excerto da entrevista a Sebastien Void


 VI


Rui Carvalho: do teu discurso transparece uma clara correlação entre o domínio estético e o domínio ético. É assim ou estou a extrapolar? Qual o sentido dessa correlação?
Void: não, não há qualquer extrapolação no teu raciocínio. A arte é edificante. O acontecimento da edificação é a ponte que liga o plano estético e o plano ético. No acontecer estético o já aí deixa de ser o mero já aí e passa a ser o perante nós. A arte é sentida com o corpo. Vemos, ouvimos e sentimos com o corpo. A obra de arte é sentida desde o corpo até ao coração. É esse o factor essencial que faz transbordar o plano estético para o domínio da ética. Somos tocados no coração. Tocados no coração ficamos marcados. A marca estética tatua-nos as vidas. Para sempre. Nossas vidas passam não só a ser enredadas na perantidade, nossa vida passa a ser vivida perante as coisas. Estar perante. Estar perante as coisas é desde logo uma atitude ética. Estando perante as coisas passamos a viver nossas vidas artisticamente. A realidade adquire peso. Somos transpirados pela realidade. Transpirados pela realidade tornamo-nos seres de valores. Deixamos o domínio meramente quantitativo para embarcamos as qualidades. As coisas deixam de ser realidades numéricas e passam a ser realidades qualitativas. Deixamos de olhar o mais e o menos das coisas para visarmos o melhor e o pior das coisas. Vendo o melhor e o pior exercemo-nos eticamente. Há toda uma educação que começa a ser erguida desde os escombros do que fomos. A arte edifica-nos, torna-nos outros. Somos erguidos dos escombros. Somos arrastados na dificuldade da medição. Medindo o melhor e o pior nossas vidas tornam-se mais difíceis. Tornam-se mais difíceis mas também se tornam melhores. Somos a melhorar, a cada dia. Quanto mais difícil quanto melhor. O grau de dificuldade está intrinsecamente agregado ao grau de capacidade. Quanto mais capazes formos para discernir o melhor e o pior mais capazes seremos para nos exercermos eticamente.  

Ashes to ashes

Da maresia tão só me sobram búzios por dentro dos ouvidos. É neles que julgo matar saudades. Os sons do início da Terra. Os corpos girando em torno da adolescência. Não se trata de virar a cara e olhar outra perspectiva. Não. Não há outra perspectiva. Há outros olhos. Há outras visões. Contudo, não há outra perspectiva. Não há outro mundo que não o que nos temos a haver. Podemos ser cegos, sim. A cegueira pode durar toda uma vida. É quase sempre assim. Somos cegos no rodopio. Toda uma vida. Rodopiamo-nos até perder o fôlego. De fôlego gasto julgamos descansar nossas vidas. Descansamos nossas vidas nas coisas que nos são perto. E no entanto, tudo é tão longe. Tudo é tão longe e imperdurável. Todas as coisas se nos perdem, como areia por entre os dedos. No fim de tudo nada nos resta. Nada mais que o assombro da memória. Deveríamos educar-nos para a morte. Deveríamos educar-nos para a morte e não para o exercício da mentira. E no entanto, somos peritos no mentir. De tanto mentir perdemo-nos de nós mesmos e do trilho que deveríamos seguir. Esquecemo-nos a importância de adquirir memória. De quão importante é adquirir memória. Adquirir o lastro da memória para que a memória perdure milénios. Porque não nos adquirimos a imperceptível matéria dos sonhos? Não basta apenas porfiar, é urgente tecer o mundo. Descontruir  o que foi feito e sobre o mesmo reerguer o delírio. Destruir para criar. Criar um mundo novo sobre os escombros do velho. Esquecemos a consulta dos oráculos, tão lá atrás. Trocámos os oráculos pelos psicólogos, pelos psiquiatras. Como fossem os médicos superiores à sabedoria. O senhor é muito negativista. O Sr. trate-se. O Sr. distraia-se. Divirta-se. Não, não. O mundo não é assim tal qual o vê. Há sempre um lado positivo em todas as coisas. Irra. Qual lado positivo qual porra. Não há lado positivo. Há a verdade e a mentira. Os médicos serão tragados pelos vermes. E eu, eu, que não quero ser comido, arderei as chamas até morrer e depois de morto continuarei a arder. Ashes to ashes, como diria Bowie, o velho sábio.  

Transitions of the Same, n.º 3, by Steven Space


sábado, 15 de outubro de 2016

Entramos no mundo como se estivéssemos a entrar num trem em andamento. Somos socialmente adestrados para poder acompanhar o compasso, o andamento do trem. Acompanhar o trem. Acompanhar o compasso. Não perder o andamento. Somos o não perder do andamento. Somos o não perder do andamento do trem. Onde está o trem? Onde está o andamento? Onde está o andamento do trem? Onde está a música? Onde acompanhamos a música? Onde estão os compassos? Quais são os compassos? Onde acompanhamos o mundo? Desde onde acompanhamos o mundo? A música. Somos como teclas de um piano. Somos tocados como teclas de um piano. Quem nos toca? Somos nós quem nos tocamos? O toque é o centro do universo. O humano centra-se no toque. A vida. A vida é a vivência do toque. O toque sinaliza-nos o compasso do mundo. O toque pode ser o toque compassado do trem ou o toque do sair do compasso. No sair do compasso o toque regista-se-nos como empurrão. Somos empurrados para fora do trem. O andar do trem é o andar adestrado. Entre o mimetismo e o atavismo. No trem batemos palmas no ritmo do compasso. As palmas são muitas. As palmas são imensas. O ruído das muitas palmas embala-nos no compasso. A habituação ao ritmo das palmas é desde cedo. O desde cedo do ritmo das palmas dá-nos o ruído como algo familiar. O ruído do trem é-nos familiar. Desde cedo. Desde cedo somos tocados no ritmo do trem. O compasso é sempre o mesmo. O trem desembarca sempre as mesmas estações. Há um roteiro. O roteiro é decorado. No roteiro fazemos coisas, cumprimos funções. No roteiro somos a funcionalidade do trem. O trem é conduzido. Na condução do trem não há peripécias. O trem não improvisa. O trem segue o roteiro. “Pouca terra, pouca terra…”. Indefinidamente. Seguindo o roteiro somos pouca coisa. No entanto somos muitos. O ser muitos no cumprimento do roteiro faz-nos presentes. Estamos em algazarra. O estar em algazarra anima-nos. No compasso gritamos as palmas. Compassadamente. A plenos pulmões. As palmas são acompanhadas de gritos, de vociferações. Na algazarra é proibido o discurso com sentido. Na algazarra o único sentido é o sentido das palmas. 

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

A kind of poetry - Rui Carvalho

Provindo do sol

Provimos do sol girando as marés
até ao emaranhado de umbilicais cordões 
tocando-nos às portas 

somos aqueles que se perdem na dádiva do som

nada pedimos
nosso sopro é dado

por trás das portas
no interior das casas
há vidas carcomidas na algazarra 
um putrefacto reino onde a pureza se jaz

eis-nos feitos da mesma vã matéria
que todos aqueles que não nos escutam

ainda assim somos distintos
nossa fronte nos carrega o mundo 
até aos ombros doloridos 
até aos lugares onde nos fazemos durar a impossibilidade

subimos rio acima 
e nas nascentes recostamos os declives conduzindo-nos o equinócio.

sábado, 8 de outubro de 2016

Transitions of the same, by Steven Space


Entrevista a Sebastien Void - V

Excerto da entrevista a Sebastien Void


Rui Carvalho: depreende-se do teu discurso que a Arte constitui o epicentro da tua vida. Ao que parece, sem arte a tua vida seria destituída de sentido. Até que ponto a tua vida e a arte são acontecimentos indistintos?

Void: a arte é edificante. A arte é o acontecimento da edificação. Sendo a arte o acontecimento da edificação é evidente que arte e vida se revelam acontecimentos indissociáveis. A arte é uma emanação do carácter. É indispensável ter-se carácter para se ser produtor de arte. Acho que é por isso que nunca me assumi verdadeiramente como um artista. Sempre achei que o meu carácter não era suficientemente forte. Não era ainda suficientemente forte. Por isso decidi edificar o meu carácter. A edificação do meu carácter seria o passo a dar. Só edificado me atreveria a mover-me no domínio estético. A falta de carácter é mesmo o primeiro motor da não arte. O mundo tresanda a indivíduos destituídos de carácter que se alcandoram a artistas. Um gajo tem que ter algum respeito. Um gajo houve Bach e fica atónito com o carácter que emana daquela música. Depois de ouvir uma música com tanto carácter ficamos exangues. O que podemos fazer? O que podemos fazer para chegar lá? O que podemos fazer para alcançar o carácter daquela música? Bom, não apenas o carácter daquela música, a genialidade daquela música. Nada. Ou nascemos génios ou nada feito. Na música de Bach não se trata apenas de carácter. Trata-se de génio. Ou se é genial ou não se é genial. Existem três grandes domínios artísticos, a não arte (a arte destituída de carácter), a arte com caráter e a arte de génio. O problema é chegar à arte de génio. Como chegamos lá? Como viver a arte de génio? Como fazer de nossas vidas o acontecimento do génio? Como fazer de nossas vidas uma obra de arte? É isso que nos deveria preocupar. É isso que me preocupa. Preocupa-me a edificação. Ao edificar-me percorro etapas. A etapa posterior solidifica a etapa anterior. E assim sucessivamente. Sou por camadas. A edificação faz-se percorrendo etapas, subindo degraus. A subida dos degraus torna-me mais próximo da aquisição de carácter. O Bowie é, talvez, o exemplo mais próximo e mais claro de alguém cuja vida foi vivida enquanto obra de arte. A vida do Bowie foi uma obra de arte, a morte do Bowie é uma obra de arte. É impossível dissociar a vida e a morte do Bowie do seu legado artístico. É indispensável que nos saibamos fazer arder. A Arte é o acontecer da ardição. O artista é uma fogueira a arder. A arte é entre as chamas. O artista é aquele que é em chamas. Tal qual a arte, também a vida arde. Somos seres de ardição. Tal como disse o Artaud, procuro ser aquilo que devo ser, uma “vitima queimada na pira, a transmitir sinais por entre as chamas”.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - IV

IV

Excerto da entrevista a Sebastien Void

Rui Carvalho: viver na exiguidade ou na exiguidade extrema é estar a ser contra o mundo, é estar a ser contra a maré do mundo. Ser constantemente contra a maré do mundo é uma posição difícil ou mesmo insustentável, como sustentas a insustentabilidade da tua posição? 

Void: a vida é um jogo de sorte e azar. Habitamos um casino onde a sorte é um fenómeno raro. O prémio sai sempre à casa. Pelo menos quase sempre. Somos seres de hábitos. Também eu sou um ser de hábitos. Tudo é uma questão de habituação. Habito o mundo de mortos em meu redor. Os mortos acompanham-me, os mortos possibilitam-me suportar o embate do mundo. Quando sinto que me encontro numa posição ou num humor mais insustentável agarro-me ao Livro do Desassossego. Os livros já me salvaram a vida várias vezes. Os livros e a música. A Arte, a Arte salva-me a vida. A cada dia. A cada fricção com a realidade é a arte que me sara as feridas. A arte, somente a arte nos pode salvar sermos soterrados na avalanche de imbecilidade que nos rodeia. A imbecil atmosfera do mundo seria insustentável sem arte. Somente a arte nos pode atenuar o desencanto. O desencantado é o ser que germina no canto. O desencantado erige-se no canto. Prostrado longe do vulgo o desencantado germina no canto. A arte é uma erva daninha germinando, mesmo entre as ruínas. É estreita a correlação entre a arte e o sofrimento. A arte germina no sofrimento, nasce do sofrimento. O artista é aquele que sofre a inadequação ao mundo. Tal qual o filósofo. A produção artística e filosófica nascem do sofrimento do mundo. A inadequação. A inadequação ao mundo é a condição primeira do acontecer da arte e da filosofia. Inadequados. Inadequados estamos em desequilíbrio. A produção artística é o evento que me possibilita o equilíbrio. Funâmbulo. Sou-me no exercício do funambulismo. A arte é a vara que me equilibra. Entre os extremos. Sou um exercício de equilíbrio. Entre os extremos. Exerço-me devagar e sem demasiadas acrobacias. É esse o segredo. É essa a condição que me suporta. A arte suporta-me o peso do mundo. Caminho as palavras, os tons, os sons. Caminho os resquícios de beleza. Até que os resquícios me habitem. Sou-me habitado nos resquícios. Sou-me o que resta da agrura. Sou entre a agrura das coisas. Na agrura me germino, sou a germinar na agrura. Funâmbulo. Meus pés rasgam o arame dos dias. Até ao rasganço dos caminhos. O desbravamento situa-me. Sou o ser situado. Entre o fim e o princípio. A vida é o regresso da morte. Na morte somos regressados. O regresso não é uma mera possibilidade. O regresso é todo o domínio do possível. Sou em preparação. Impreparado. Impreparado me sou na preparação do regresso. Vou e venho com as marés. Assim me habituo a natureza das coisas. Água, ar, terra, fogo. Sou a demanda dos elementos. Procuro o oficio da demanda, na demanda me germino. Funâmbulo. Funâmbulo sustenho o embate das marés do mundo.       

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O desespero é ser-se amaldiçoado no duplo toque da desavença. A necessidade de verdade e, na necessidade de verdade, o dom da escrita. O desastre. O desastre e a sublimação do desastre. O naufrágio. O acontecer de mim mesmo emergindo no naufrágio. Ser para a verdade é ser para o naufrágio. É ir até à perda de pé. Ir até à perda de pé e naufragar. Sou a demanda do nado. Na perda de pé sou a demanda do nado. A nadar. A nadar, matéria e forma se conjugam na imprecisão do dizível. A nadar sou dado na impossibilidade de transcrição do real. No nadar sou a luta. A luta lutando. Até ao avesso das vísceras. A luta é até ao avesso das vísceras. Até ao vislumbre da possibilidade inaugural. A clareza. Um rasgo de claridade. Até ao rasgo de claridade. O rasgo de claridade é o instante inaugural. A confusão é escura, escusa. Na confusão ocorre o rasgo. Nado na escuridão. Sou naufragado na escuridão. A claridade do clarão acrescenta-me ao mundo. O todo da visibilidade é indiscernível. Somente temos acesso ao rasgo. A necessidade de verdade é um correlato da necessidade de transparência. O rasgo não proporciona transparência. O rasgo apenas dá alguma luz. A claridade dá alguma luz. A claridade da alguma luz é momentânea. O rasgo enche-nos na estranheza. No rasgo estamos estranhos. O rasgo é pouco tempo. O ser pouco tempo do rasgo exige-nos rapidez. É necessário ser-se rápido, de modo a acompanhar o instante do rasgo. Como uma droga. O rasgo torna-se viciante. Tornamo-nos adictos do rasgo. Somos adictos do rasgo. Queremos rasgo, cada vez mais rasgo, e que o rasgo dure cada vez mais tempo. Queremos que o rasgo nos traga transparência. Somos necessitados de transparência. Somos guiados na vontade de verdade. O desespero. O desespero advém da humana incapacidade de adquirir transparência. O rasgo é a única possibilidade. Ao queremos mais que o rasgo estamos perdidos. Ser perdido no naufrágio é estar em desespero. A busca da transparência é um acto insano. Procurar transparência no domínio do possível é um acto de insanidade. Somente nos é dado adquirir o pequeno rasgo de claridade. Porque não me fico pela claridade? Porque há em mim a exigência do transparecimento? Porque sou insano? Porque continuamente rasgo as vísceras nas palavras? Porque me são caras as palavras? São as palavras a transcrição do mundo? Porque me ecoam as palavras? Porque não sou outro? Porque não sou vão? Porque não sou vão como o mundo? Porque pretendo que o mundo me faça sentido? A estranheza é perto da insanide. Tão perto que quase se tocam. Insanos. Porque não é nosso mundo o mundo das casas habitadas? Porque é estranho o nosso habitar? Damos passos na floresta. Ao dar passos na floresta adquirimos a forma do ser florestal. Somos aqueles cujos uivos à noite se ouvem. Perplexos. Perplexos na impossibilidade do transparecimento. Vagando adquirimos a forma do vagar. Vagando emitimos sinais. Somos emissores de sinais. Também a escrita é vaga. Palavras. Meros sinais significando o mundo. Interior e exterior. O interior e o exterior do mundo. O mundo lá fora e o mundo cá dentro. Como conjugar o inconjugável? Porquê a inquietude do conjugar? Como fazer que o mundo lá fora faça sentido cá dentro? É o sentir sentido? É o sentido visível? A transparência. Como visar a transparência? É a transparência lá fora ou é a transparência cá dentro? Existem duas modalidades de transparência? Se existem duas modalidades de transparência são elas perscrutáveis entre si? Porque queremos mais que o que podemos ter? Porque não queremos coisas? Porque não queremos coisas e mais coisas? Porque não queremos ser colecionadores de coisas? Porque colecionamos palavras? Porque trocamos as coisas pelas palavras? Porque nos são as palavras valiosas? Porque não fazemos silêncio? Porque não fazemos silêncio para que o silêncio nos toque? A nadar. A nadar nadamos no nada. 

domingo, 2 de outubro de 2016

Entrevista a Sebastien Void - III

III

Excerto da entrevista com Sebastien Void

Rui Carvalho: explicaste-nos um pouco como entendes o funcionamento do mundo, mas não nos explicaste o modo como te relacionas com as pessoas que fazem funcionar o mundo. Como é o teu relacionamento com os seres acabados que alegremente fazem o mundo funcionar?

Void: os seres acabados são seres sem dúvidas. Os seres acabados almejam o sucesso, a todo o custo. Não há tempo nem espaço para indecisões. Os seres acabados decidem, sem dúvidas e preferencialmente com muita pressa. O segredo do sucesso é ser-se rápido. O segredo do sucesso é ser-se rápido e preciso. Como uma bala. Não há lugar para contemplações. Contemplar é perder tempo. Agir. É fundamental agir, tão rápido quanto possível. Quanto mais depressa melhor. Somos levados na enxurrada da acção. O fundamental mesmo é agir, agir rápido e em força. Não interessa a medição do agir, de todo. O sucesso não admite contemplações. Nem estéticas nem éticas. É fundamental que façamos o nosso mundo rolar. As nossas acções deverão contribuir para que o nosso mundo ande sobre rodas. Pouco importa que para que o nosso mundo ande sobre rodas tenhamos que empacar o mundo dos outros. Somos partículas de realidade atomizadas. Cada um de nós. Cada um de nós é o seu mundo. Cada um de nós é o seu mundo particular. Cada um dos nossos mundos é uma realidade particular e intransmissível. Há partículas de realidade que se repelem e outras que se atraem. Há mundos que se cruzam e mundos que jamais se unem. Os seres acabados empacam o mundo. As acções dos seres acabados não contemplam o lugar do outro. Ou melhor, as acções dos seres acabados vão sempre no sentido de ocupar o lugar do outro. De empurrar o outro para fora de cena. Os seres acabados jogam o jogo dos lugares. Todas as suas vidas gravitam em torno da necessidade de ocupar lugares. Trata-se de ir subindo hierarquias. Os seres acabados são peças no jogo das hierarquias. Ocupando lugares os seres acabados adquirem existência. As suas existências dependem dos cargos que ocupam. Chamemos-lhes ocupantes de cargos. Os ocupantes de cargos são os responsáveis pelo funcionamento ou não funcionamento do mundo. Parece ser mais ou menos evidente que habitamos uma realidade disfuncional. Os ocupantes de cargos são os principais responsáveis pela disfuncionalidade do mundo. Todos somos responsáveis. Todos nós somos responsáveis por deixar que a ganância habite o coração das coisas. Há no entanto graus de responsabilidade. Os ocupantes de cargos são infinitamente mais responsáveis que cada um de nós. Os ocupantes de cargos são gente abjecta. Gente abjecta e imbecil. Os ocupantes de cargos pululam, de cargo em cargo. O melhor exemplo actual de um ocupante de cargos é o Durão Barroso. O Durão Barroso é um personagem abjecto. Acho que sinto qualquer coisa entre o nojo e o ódio. É o que sinto para com esta gente, para com toda esta corja pululante. Desprezo. Acho que é desprezo o que sinto. Não me relaciono. Pura e simplesmente não me relaciono com a corja de seres acabados que pululam o mundo. Há muito tempo que deixei de ver televisão. Ver televisão tornou-se-me impossível. Jamais me relacionaria, jamais apertaria a mão a qualquer um dos Durões Barroso deste mundo. O mundo está pejado de Durões Barroso. São os Durões Barroso que emperram o mundo. Esse facto faz com que o leque de indivíduos com os quais me posso ou me poderia vir a relacionar seja de uma exiguidade extrema.

Segunda edição do projecto The Lost Tapes de We Hate All These Liberals


http://anti-demos-cracia.bandcamp.com/album/ii