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domingo, 23 de dezembro de 2018

De Rerum Natura - VI - Fotografia: Paula Santo António; Texto: Rui Carvalho



Tudo se inicia na alma. Sim, também o incêndio dos corpos. Os olhos são o início da estrada. 
Por enquanto tudo é deserto. 
É imprescindível que saibamos ganhar lastro para avançarmos mar adentro. Percorrendo lugares desconhecidos adquiriremos a coragem da queda. 
O desnudamento é uma arte difícil. Poucos conseguem alcançar a magia das coisas. Convém ser preciso nos passos, no modo como nos dirigimos ao que verdadeiramente importa. 
Desenhar-te-ei o rosto a partir dos teus olhos. Após o teu rosto, sonharei teu corpo. Não tenho pressa de chegar a ti. Conhecendo de cor o sol saberei de cor as tuas ondas. 

Quando as rochas alcançam o barulho do mar todos os mundos se revelam possíveis. 


Fotografia: Paula Santo António
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

De Rerum Natura - V - Fotografia: Paula Santo António; Texto: Rui Carvalho



Os loucos acampam rente ao mar. Como se estivéssemos nos primeiros dias de verão, os loucos vão chegando cedo. As praias estão ainda desertas e eles já lá estão, sentados. Os loucos erguem tendas em redor das paisagens, sentam-se frente a frente com o impossível. Mais tarde, quando as pessoas chegarem, os loucos adormecerão. Sem que ninguém saiba que adormeceram farão o sol chegar. A canícula ecoará nas paisagens e depois fará ricochete. Convém que as portas fechem rápido, de modo a que do incêndio só nos fique o calor.
Enquanto dormem os loucos sonham. Dentro dos seus sonhos há lugares repletos. As paisagens serão alagadas e nós estaremos lá, seremos alagados pela preciosidade do tempo. Nada se dá da mesma maneira porque tudo se mistura. 
Até que a depuração nos alcance serão necessários muitos rombos, inúmeras noites em branco resolvendo as formas do mundo. 
Estas são as águas, este é o fogo que as move.

Fotografia: Paula Santo António
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

De Rerum Natura - IV - Fotografia: Gusha Lawrence; Texto: Rui Carvalho





Há um mundo eivado de palavras longínquas. Mapas mundi. Dedadas de criança querendo aceder ao longe. Somos nebulosas de dedos cruzando os hemisférios, um mar em cima e um céu por baixo.
Os dias reflectem vagas promessas. A cada segundo, a ampulheta - o som do tempo pingando. O amor disfarça-se e o tempo também. Concorrendo lado a lado, trata-se de sermos prestes na corrida. 
Antes que o mundo caia convém sabermos adivinhar-nos. De qualquer modo, o tarde será tarde e o escuro é sempre escuro. Cabe-nos a nós reinventar as coisas, aprender alguns truques de prestidigitação. Desde o inicio, a esperança escorre. O desespero também. 
A memória. Embarcamos cidades que nunca são nossas, vamos de um estado a um outro estado. Tudo é tão repentino. A matéria é volátil e nós somos volúveis, nascemos num corpo e regressamos a lugar nenhum. 
Ainda assim,
                       há lugares tão belos! Lugares tão belos e pessoas perto do assombro!

Fotografia: Gusha Lawrence
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

De Rerum Natura - III - Fotografia: Gusha Lawrence; Texto: Rui Carvalho



Dois hemisférios, um barco, uma travessia. Cada um de nós é uma ilha, e cada ilha é um continente. Regulamo-nos pelo cansaço, não pelas horas do mundo.
O tempo dos relógios difere da realidade, e tal facto implica que sejamos apenas uma breve aragem, que ocorramos distantes de tudo. Deslocamo-nos no vento, na hipnótica certeza de estarmos sós.
Eis os dias, colando-se entre si.
Não fora o nosso apego às coisas tudo seria sempre igual.
Ainda assim, entre a tristeza e tudo o resto há uma breve aproximação, as velas enfunadas enfrentando os vendavais. É disso que se trata, de processos de descolagem. A contagem decrescente vai do máximo até ao mínimo. Quando o mínimo se assoma somos perante a partida, o intenso abandono dos lugares.
Entre o preto e o branco, livro-me das cores intermédias. Navego até ao desapego, ao rasar de uma adolescência perdida. Talvez haja uma vantagem no sofrimento. Talvez seja esta a vantagem: saber-me no mar como se em Deus me soubesse.

Fotografia: Gusha Lawrence
Texto: Rui Carvalho

domingo, 28 de outubro de 2018

Útero - XXII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



 Ausente para somas e subtracções, retrocedo a um tempo ímpar. 
Música, apenas música, os seus múltiplos ângulos e arestas. 
E.
Deus, na proporção inversa do cansaço. 
Quanto mais cansados mais perto estamos da falência, do soçobro dos orgãos vitais. 
Há uma estrada ligando os continentes e o medo sufocando a minha voz. 
A ordem das coisas é o caos, não o conhecimento. Estamos em situação, somos seres sitiados; nada do que verdadeiramente importa  pode ser-nos explicado ou demonstrado. 
A ironia, o dissipar da ilusão.
 O sentido do ser é ser mostrado. 
Música, apenas música, os seus múltiplos ângulos e arestas. 
E.
Deus, na proporção inversa do cansaço. 

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

De rerum natura - II - Fotografia: Paula Santo António; Texto: Rui Carvalho



Eis o lento trabalho da paciência, o rendilhado das águas escorrendo até à nossa sede. Acho que fomos ganhando balanço com a força da nascente. Seguindo o balanço deixa de haver atrito que nos fixe, somente um lastro que nos ganha - mesmo no decurso dos mais íngremes caminhos.
Devemos ter rondado coisas supérfluas, a mera imitação de uma vida. Tementes ao grito, continuamente saltámos por cima dos instantes. Após darmos por nós já não temos onde cair, nenhum outro lugar que não seja o vazio material das coisas.
É aqui que o mundo nos rompe, no exacto local onde a natureza é prenhe de sentido. Percorremos tantos rios para aqui chegar. 
Os peixes não têm água a mais, transcorrem numa espécie única de beleza. Aqui nos devemos debruçar os olhos, alcançar o cerne dos elementos. Até porque: o mergulho é uma arte exigente.
Agora é agora - o local onde mergulhamos a intensa meticulosidade dos peixes. 
Eis-nos no espanto, acabados de chegar a nós mesmos. 

Fotografia: Paula Santo António
Texto: Rui Carvalho

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

De rerum natura - I - Fotografia: Paula Santo António; Texto: Rui Carvalho



Tudo se trata de instantes, de fazê-los esticar até onde pudermos, o máximo que pudermos. Com o esticar dos instantes virá o distender da alma. 
Há uma intensidade em tudo isto. Quando olhamos o mundo o mundo é em nós. É necessário estar atento. Saber aguardar. Aguardar que os instantes ocorram. Saber aguardar é toda uma filosofia. 
Há um momento em que tudo ocorre. Nós estamos lá, nesse exacto momento. Sempre lá estivemos. Apenas não damos por isso. Não há um princípio. Não há sequer um fim. Há um instante em que tudo se repete. Esse instante chama-se grande explosão. Tudo se trata de grandes explosões. Tudo é fogo, tudo é em chamas. Há apenas fogueiras que ardem mais e outras fogueiras que ardem menos. Há também fogueiras que são apenas em potência, jamais se dão em acto. Apenas isso nos diferencia. 
Devemos saber fazer-nos arder, deixar-nos incendiar por entre as chamas. 
Esta é a beleza de tudo, tudo é dentro dos teus olhos. 

Fotografia: Paula Santo António
Texto: Rui Carvalho

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Breve tratado acerca de jardinar

Eis um escritor: um animal ardendo na descrença, vagando as palavras para não morrer de tédio, ou não matar de ódio. 

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 19 de agosto de 2018

Útero - XXI - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Este é o amor, síncrono. Habitamos planetas distantes. Tu ali e eu aqui. Há que rasgar a pele, lembras? Mostrar aos ossos as suas vísceras. E o silêncio, um espaço ainda simples. Sem rasgos de luz, ainda não. Quando estiver perto avistarei teu nome. 
Desde onde os rios correm? E as palavras? Desde onde nos perdemos? 
Lá em baixo havia água. Na nossa infância enchíamos os cântaros, levávamos a luz na pressa exangue de nos perdermos. 
Depressa nos tornámos homens, gente tão indecifrável. 
É claro que não sei… 
As perguntas são difíceis, minha filha. Num qualquer século impossível tornar-nos-e-mos hologramas. Sim, seremos visíveis para sempre. Mas não é isso que importa. Ou. Será apenas isso? Deus é um pronome impossível, uma espécie de luz isenta de matéria. Porque não os hologramas? Porque não sermos apenas luz? Uma vibração preenchendo as galáxias, o espírito correndo por dentro de nós…

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho

domingo, 12 de agosto de 2018

Breve tratado acerca da arte de jardinar

A história daquilo que não fomos não tem quotidiano, por isso é sempre essa a história mais bela.

Rui Carvalho, s. d.

sábado, 4 de agosto de 2018

sábado, 7 de julho de 2018

Entrevista a Sebastien Void - XLV

XLV
Rui Carvalho: Podemos inferir que, do teu ponto de vista, a democracia nos trouxe a um beco sem saída?

Void: É a correlação dialéctica dos opostos que funda a realidade. Como em tudo o resto, também a história humana obedece a um processo dialéctico. A dialéctica senhor/escravo, é essa a correlação na qual se fundam as sociedades humanas. 
A instituição das democracias modernas tem como fundamento o reconhecimento da humanidade dos escravos. A relação senhor/escravo é entrecortada pelo advento do reconhecimento do servo como um igual. A partir do reconhecimento do direito universal ao voto é reconhecida a igualdade do servo perante o senhor. Os senhores passam a reconhecer nos escravos a sua humanidade. A partir do reconhecimento da humanidade dos escravos somos instalados numa situação de entropia. Não obstante o reconhecimento, este reconhecimento não é um reconhecimento altruísta, isto é, não é um reconhecimento que “venha do coração.” Ao reconhecer o servo como um igual o senhor quer unicamente sentir-se prestigiado. O prestígio. É a partir do reconhecimento do servo como um igual que os senhores alcançam o tão almejado prestigio. Isso mesmo, o reconhecimento e o elogio são muito mais valorados se provierem de alguém que respeitamos ou em quem confiamos e, sobretudo, se for dado livremente e não sob coação.
Neste contexto, o reconhecimento do servo como um igual é um reconhecimento circunstancial. O senhor reconhece o servo como humano unicamente para que nele possa projectar o seu sentimento de vanglória. Ao reconhecer o servo como humano, ao aceitar o sufrágio universal e a igualdade de direitos, o senhor fá-lo para encontrar a contrapartida do reconhecimento. No entanto, o servo não deixa de se exercer na servidão. A servidão do servo é o trabalho. O servo trabalha para o senhor como um assalariado. Os seus direitos são como que direitos de segunda ou terceira classe quando comparados com os direitos de que goza o senhor. Por conseguinte, o senhor reconhece no servo o seu direito à humanidade, mas não o seu verdadeiro valor humano. O que o senhor espera do servo é a contrapartida de ser reconhecido como tal. O senhor reconhece a humanidade do servo mas de um modo insidioso. 
É pois esta completa ausência de reconhecimento que gera no servo o desejo de mudança.  A posição de subserviência do servo é uma posição que a longo prazo se torna insustentável. À medida que o servo revela progressos no que concerne à sua educação, progride também no que concerne aos seus níveis de ambição. Os servos são muitos. A determinada altura o servo adquire consciência do poder, do seu incomensurável poder enquanto parte dos muitos.
No trabalho o servo recupera a sua humanidade, a humanidade que perdera com o receio da violência por parte do senhor. Através do trabalho o servo começa a perceber que, enquanto ser humano, é capaz de transformar a natureza. É neste contexto que o trabalho aparece como que representando a liberdade do escravo. O trabalho constitui uma demonstração da capacidade do homem em ultrapassar o determinismo natural. No trabalho o servo adquire a capacidade de criar através do seu labor. 
O senhor havia demonstrado a sua liberdade ao arriscar a vida numa batalha sangrenta, revelando assim a sua superioridade sobre o determinismo natural. O servo, pelo contrário, concebe a ideia de liberdade trabalhando para o senhor. Trabalhando o escravo acaba por se aperceber que, enquanto ser humano, é capaz de executar um trabalho livre a criativo. E que executando o seu trabalho adquire capacidade para alterar o curso da natureza.
O servo tem pois que considerar a sua liberdade em abstrato antes de a poder gozar na realidade e na sua plenitude. O escravo é impelido pelas suas circunstâncias a inventar os princípios de uma sociedade livre antes de a poder experimentar. A consciência do servo torna-se, pois, superior à do senhor no sentido em que é mais auto-consciente; mais reflexiva quanto a si própria e à sua condição. Antes de desafiar o senhor, o servo atravessa um longo e doloroso processo de auto-educação. Ao reflectir sobre a sua condição e a ideia abstracta de liberdade o servo atira fora várias versões preliminares de liberdade antes de chegar à verdadeira ideia de liberdade.
A questão que se coloca é se chegámos ao fim de dialéctica, sendo que o fim da dialéctica implica o fim da história, se com a democracia atingimos uma sociedade na qual já não existem mais contradições internas. Se assim fosse, a instituição da democracia ter-nos-ia trazido a um beco sem saída. Mas, não. As contradições internas da nossa sociedade são-nos postas fora de visão pelos meios de comunicação em massa. Somos massificados na mentira, no delírio da constante felicidade. 
Há, contudo, uma contradição fulcral que nos situa, o embate entre o homem quantitativo e o homem qualitativo. Não, a isotropia não é uma condição natural. A isotropia é uma fabricação urdida pelos muitos, pelo homem quantitativo. A existência do homem quantitativo depende do adormecimento das sociedades. A luta, a luta é contra o homem quantitativo. A luta é contra o adormecimento, contra o estúpido poder dos muitos. Enquanto houver um homem que pense jamais a contradição será elidida. É necessário saber saltar o muro do beco para onde somos conduzidos como gado.


Rui Carvalho, s. d.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Útero - XX - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Basta alterar as cores do mundo para que o mundo pareça ser outro. No entanto, tudo se mantém o mesmo. Imitamos a vida longe da lava e longe da vida tornamo-nos gastos. 
As casas envolvem-nos os gestos. Nós envolvemo-nos nas pretensas certezas. Assim vamos camuflando os dias. Camuflados nos dias avançamos noite adentro. Cingimos a pele com a roupa adequada buscando o centro das coisas. 
Esta sede de alcançar o brilho. 
Confundimos a felicidade com o bem estar. Talvez seja sensato. A felicidade é um tempo fugaz, foge-nos das mãos como a areia da praia. Sejamos pois comedidos. Queiramos um brilho que não brilhe muito. Contudo, "uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa". Um pouco de método é o que se exige. 
Os lugares construídos pelos homens não são lugares felizes. O nosso bem estar colide com o bem estar dos outros e para que tudo batesse certo seria necessário ilidirmos de nós a ganância. Ou seja, a soma dos corpos é idêntica à soma dos mundos. Cada corpo é um lugar próprio e intransmissível.
São estes os factos que nos condicionam. 
Nem felizes nem infelizes, vamos divergindo até à hecatombe. 

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 3 de junho de 2018

Desertos - XLIII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Digamos que os sonhos de apagam, que se vão tornando cada vez mais ténues. No início dão-se com uma força tal que nos empurram à acção. Depois, é a acção que nos empurra. Deixamo-nos ficar colados ao mundo e colados ao mundo tornamo-nos horizontais. A verticalidade dilui-se com o tempo. Damos por nós sendo quem jamais quisemos ser. 
O mundo ocorre-nos como uma beleza hostil. Nós ocorremos com o mundo. Somos qualquer coisa transcorrendo entre a bestialidade e o divino. 
E.
Há imagens que nos espelham melhor que o nosso olhar no espelho. O abandono. Quando a manhã ocorre o mundo torna-se tarde. Como rios desaguando as encostas de uma qualquer lixeira, somos levados na enxurrada. O primeiro a chegar sente-se mais alto, mais próximo da afirmação. Aí chegados, perdemo-nos na obesidade mórbida.  
Deixamos para trás as incertezas. 
Deveríamos manter sempre uma distância segura relativamente à estupidez. Até porque, qualquer travagem do veiculo da frente nos trará a colisão. Subtraímo-nos ao que poderíamos ter sido e esse é o pior retrocesso. Rondamos o abismo cheios de certezas até cairmos de bruços sobre o nosso próprio vomitado.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho


Útero - XIX - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Entre uma casa e outra há o ofício do barro. Como um espelho, o húmus germinando até à ausência do solo. Nas cavernas descobrimos abrigo. Depois, desde a lonjura do verbo até ao lugar onde existimos, distamos alguns milímetros do fogo. 
A determinada altura há uma cisão. 
Nas sombras alcançamos a parecença das imagens. Como tochas acesas sinalizando a luz, nelas ardemos até à incompreensão. 
Tocadas em tons dóricos as escalas do fogo indiciam-me o caminho, os lugares inóspitos onde os homens não passam. Sigo as imagens, o intacto silêncio das pedras. Será aí que transpareceremos. 
É  necessário chafurdarmos no lodo para sabermos de onde provimos. 
Aguardemos pois a água e a lama, todos os lugares desabitados. Transcorrendo o rio Jordão,  desde o lugar onde se desce até ao desaguar no mar morto, há um mundo de permeio. 
Entre a água e a lama ocorrerá a vida, a tentação da queda, tão grande quanto a vontade de nela sucumbirmos. 
Que o desejo cresça tanto que nos tornemos Dioniso - as formas do vinho, o furor da paixão.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho



quarta-feira, 30 de maio de 2018

Desertos - XLII - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Alguns lugares são inclinados, descem até às raízes das árvores. Apontados ao centro da terra, aí nos olharemos pela primeira vez. Despidos de roupas somos assim: pedaços de carne, diluídos até à putrefação. 
Abandonámos os quartos vazios, deixámos as salas plenas de insectos. Dirigimo-nos depois para longe. 
Alguns quilómetros antes do fim julgamo-nos perto de vencer o mundo. Basta contudo breves segundos para que tudo se desvaneça. 
Ainda assim, é importante o modo como nos damos à morte. 
Vamos sendo arquivados no fluxo das coisas, será nesse fluxo que ocorrerá nosso rasto. As direcções são múltiplas e, há escolhas que não têm retorno. O horizonte é longo e curvilíneo. Desse facto se infere a impossibilidade do voo. Boca a boca acendemos pequenos luzeiros. Como morcegos, irrompemos as cavernas guiados pelos ecos emitidos. Assim vamos caindo até rasarmos a descrença. 
Tornamo-nos voláteis. Voláteis e inúteis. Não há como evitarmos a perda das asas. Mesmo que a madrugada ocorra não deixaremos nunca de vagar na sombra do que fomos.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

sábado, 26 de maio de 2018

Desertos - XLI - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



O tédio invade-me, irrompe por dentro das casas. Depois, em longos tragos, a inundação desapropria-me das várias dependências. Todas excepto uma. Aquela que comigo formará uma necessidade básica: o solipsismo, a pre-condição para que a existência ocorra.  
Os nossos passos tropeçam o chão e, além do mais, deus recusa o comércio dos homens. Essas são as duas condições que nos revelam quem somos. Ocupamo-nos de coisas supérfluas, nada que esteja directamente adstrito à noção de peso. Ainda assim, acedemos ao peso por via indirecta. Após o tropeço rasamos o chão. Somente então são nossos focinhos guiados para a assimilação das profundezas. Antes da queda o solo é uma realidade indescernível. Somente na queda o mundo nos dança.     
“A angústia faz-nos dançar!” - terá dito o Mestre.
Entretanto, haverá que aguardar o último instante antes que a loucura se instale. Enquanto isso, percorramos o percurso das sombras, brindemos o amor e o ódio, todas as artes perigosas em demasia. 
“Com as pedras afiadas dentro dos bolsos desafio-vos para o exercício da queda!” - terá ainda dito o Mestre.  
Então sim, estaremos aptos para ouvir-nos os ossos, o trote ascendente do cavalo de Turim.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Desertos - XL - Fotografia: António Caeiro; Texto: Rui Carvalho



Fornicando o dilúvio, Jocasta levita os espasmos até que Édipo perca a visão. Antígona permanece emparedada entre os meus olhos. Sigo o mesmo caminho de sempre, percorro-me até à densificação do solo. A paisagem intensifica-se e, como se nada fosse, as paredes ruem. Após haverem ruído tudo fica a descoberto; a loucura, inclusive. Da vulva da viúva de Laio irrompeu o trágico desmando, os longos frutos do incesto. 
Toda a sorte me abandonou com excepção de Antígona, minha filha. Somente Antígona não me abandonou ainda. Foram curtos os meus dotes de pai e ainda assim sou bafejado no amor filial. Expulso de Tebas por meus próprios filhos, vago agora o que de mim resta, meu próprio exílio no rio dos mortos. 
Tal qual a paz, a guerra não conduz a lugar algum. Polinice e Etéocles, meus filhos, morrerão na cobiça, e na cobiça darão meu trono a Creonte. Somente Antígona permanecerá no amor. Perante o insepulto cadáver de Polinice se reerguerá a sua dor. Contrária à proibição imposta por Creonte, pois que quem sem os rituais fúnebres morresse condenado seria a vagar as margens do rio que conduz ao mundo dos mortos, sem poder jamais alcançar o outro lado. Com suas próprias mãos, Antígona enterra seu infeliz irmão. Ao enterrá-lo se enterra em sua própria morte. 

Emparedada entre meus olhos, assim Antígona permanece. Desde agora, para sempre.

Fotografia: António Caeiro
Texto: Rui Carvalho

domingo, 6 de maio de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XL - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



É exactamente assim que o espanto ocorre: pé ante pé, aventuramo-nos mundo adentro. Entramos vagarosamente pelo interior das marés, e no interior das marés somos sulcados pelas ondas. Há um ir e vir, um movimento circular. Não o movimento dos êmbolos, indo e vindo de trás para a frente. Um movimento esférico, um ruído rodando em redor do silêncio. É nesse movimento que tudo apreendemos. Entre os espasmos de prazer e o cerne da angústia, a eterna repetição do mesmo toca ambas as extremidades das coisas. O bem e o mal. Aquilo que denominamos como bem e mal é parte integrante desse mesmo movimento. Somos uma e a mesma coisa. Não há várias realidades. Há apenas bolhas de sentido que criamos para nossa protecção. Protegidos pelas bolhas julgamo-nos a salvo. Tentamos esquecer-nos da possibilidade fulcral, o rebentamento. Que apenas no rebentamento o mundo ocorre. Após o rebentamento somos dados na estranheza, e é na estranheza que nos aproximamos da perda de pé. As ondas vão e vêm, conduzem-nos com elas. Por vezes o rebentamento é tão forte que perdemos os sentidos. Isso, é a perda dos sentidos que nos exige a re-orientação. 
O humano, este esforço constante. Um mundo dado entre a luminosidade e a queda. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 29 de abril de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXIX - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Erguermo-nos com as paisagens. Absorvidos pelo solo reentramos o horizonte. Em nossa tez se desenha o destino, as múltiplas rugas em formação. Para onde quer que nos viremos repetir-se-á sempre a mesma história: o tempo esfumando-se no chamamento do mundo.
Deixamo-nos moldar nos modos de ser das coisas. 
Há contudo uma educação, um processo educativo que apenas podemos percorrer sozinhos. Há gente que deixa rasto nos luzeiros que acende, é essa a única realidade que importa. Se soubermos mirar o horizonte por trás dos nossos olhos alcançaremos o brilho, um silêncio tornado branco até à cal.
Por vezes há estrelas cadentes, cometas rondando a velocidade da luz; e fósforos que ardem na incandescência dos teus olhos.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 22 de abril de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXVIII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Tocamos ao de leve o rosto das horas e a superfície dos dias cresce até ao som. Por vezes o sangue efervesce, tanto que o amor parece possível. Descemos as ruas em contramão, tentando que todos os líquidos nos invadam, e com os lugares gastos de tanto corrermos irrompemos as solas do medo.  
No fundo do tempo há uma memória, os ossos do mundo rasgados de encontro à solidão. E sonhos que pingam desde longe. Desde o rosto de Pandora que a vida ronda o sortilégio. 
Treino-me no golpe de rins, no exercício da arqueologia da queda. Soterro-me nos escombros. Nos escombros aguardo o reencontro, o vago gesto da pertença. Onde o silêncio nos gela. É esse o lugar. O gelar do silêncio traz em si a matéria do mundo, uma música, toda a música rondando todos os lugares. E a chave, o secreto código conduzindo ao teu cheiro. As figuras, as formas, as cores. 
A certeza é esta necessidade de pertença a outro lugar.
A descoberta.
Quando a caixa se abre tudo é possível. Todo o mal e todo o bem. 
Tombarei, frente e frente com o medo.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 15 de abril de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXVII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Damos por nós correndo, tentando alcançar uma qualquer luminosa matéria que nos incendeie. Será nesse incêndio que ocorrerá a primeira luz. Ocupamos as artérias incisas no coração do mundo. Depois, o coração bombeia-nos com o sangue arterial para que tratemos de assimilar todas as impurezas. Após a grande circulação deveríamos regressar ao centro do coração, regenerarmo-nos no oxigénio. Contudo, vagamos com o dióxido de carbono uma vida inteira. Somos perdidos antes do regresso. Um conglomerado de gente rapidamente se torna massa, e a massa é um operador hediondo. Quando a massa ocorre tudo se torna tarde.
Ninguém sabe bem para onde se dirige, apenas que há uma luz que diariamente ocorre. Dados perante a luz, agimos com uma clareza excessiva, pelo menos até sermos trucidados na transparência dos espelhos. Até lá achamos fazer sentido derrubando tudo em redor.
Tendemos para a devastação, é isso.  
Quando olhamos o espectro do decaimento é já tarde demais. A inexorável força do tempo.
Quantas perspectivas temos de erigir até formarmos uma visão do mundo? Isto é, quantos quilómetros distamos da realidade?

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 8 de abril de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXVI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



A madrugada repete-se, indefinidamente. A clareza das manhãs contrasta com a estranheza da realidade e assim nos tornamos cercados na melancolia. A cada madrugada julgamos ter acertado o mundo. Olhamos o branco como um indicio de clareza, esquecendo que também o branco se escurece. Depois, a noite percorre-nos até que o brilho nos ofusque, e quando o brilho nos ofusca tendemos a cerrar os olhos. 
As qualidades secundárias não explicam o ser do mundo. Mesmo que pudéssemos pintar a realidade de cores distintas tudo se manteria o mesmo. A demíurgia apenas nos toca uma única vez. Após o acto de Criação tudo se repetirá do mesmo modo, para sempre. 
Então, cegos de exterioridade, tendemos a olhar para dentro. Olhamos para dentro e continuamos ausentes de sentido.
Somos em hecatombe, o bem e o mal derivando-nos em todos os caminhos.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 1 de abril de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Rasgamos os dedos na colheita das flores e depois os espinhos acompanham-nos para sempre. A estultícia propaga-se, como um veneno. De tal modo que não há qualquer limite para o mal que causamos. Atraídos pela força da gravidade, ruminamos o chão até nos tornarmos infectos. E não, não há luz que nos ilumine. Há uma porta que se abre e depois se fecha para sempre.
Partimos às cegas por dentro do labirinto; depois andamos às voltas uma vida inteira. 
Procuramos pistas, indícios de um brilho que nos indique o lugar onde devemos permanecer.  Por vezes julgamos que sim, que encontrámos o tal brilho. Quando assim é, corremos como loucos  na direcção apontada. Acho que somos seres de vislumbres, uns mais outros menos. De quando em vez vislumbramos uma qualquer ilusão, um breve brilho reflectido no interior da caverna. Na ânsia de nos acendermos corremos então desalmadamente. 
Sim, os cavalos também se abatem. 
Temos a cenoura em frente dos nossos narizes e é a cenoura que nos guia os passos. Há quem pise. Há quem seja espezinhado. Por vezes as posições mudam. Os espezinhados gastam toda a sua energia tentando mudar de posição. Os que espezinham tentam manter-se assim, a todo o custo. Meras crianças brincando no escuro, é nesta amálgama de “não se sabe bem o quê” que desperdiçamos as nossas vidas.
Deveríamos ser criadores de mundos, ao invés de sermos crianças brincando na escuridão. A energia, somente a energia pode fazer brilhar o escuro.
Deus disse: “ faça-se a luz!” e a luz foi feita.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 25 de março de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXXIV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



As flores nascem e murcham no mesmo exacto lugar. Assim mesmo, a vida e a morte professam uma mesma exactidão, ambas tendem uma para a outra. Eu tendo para restar só, para que em solidão possa escutar o sopro do mundo. 
Atraídos pelo fogo, embarcamos verbos não dizíveis. 
No principio era o verbo, lembras? 
Esquecemo-nos do que mais importa. Que há fragrâncias que nos libertam, que tornados um somos tornados outros. Os opostos unem-se para o nascimento de um terceiro, o amor ou o ódio. A isso podemos dar um nome: dialéctica. 
Há fragrâncias que nos libertam. Sentimo-las nos olhos, fervendo até ao céu. Libertos do que somos seriamos mais perto do fluir das coisas. Isso é o máximo que podemos ser: elevarmo-nos no sopro e soprados atingirmos a razia de um outro mundo. 
Serei leve, leve até à queda. Na queda serei breve. 
Cairei, com estilo…

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho