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domingo, 28 de janeiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXVIII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



 Tudo é moldável, inclusive a matéria. 
E.
Há um dia em que acordamos outros. Puxamos então de longe o que um dia fomos e é essa força que nos gasta. Os ossos entram-nos por dentro da carne e as horas rasgam-se até os dias serem outros também. Assim entramos no labirinto, desconhecendo qualquer saída, qualquer rasgo que nos possa valer uma vida. 
Por cima de nós há o céu e por baixo, por baixo há uma bola de fogo. Habitamos a zona intermédia das coisas, é isso. É isso que nos dá esta ilusão de segurança. Somos seguros pelos corrimões e achamos que assim será para sempre. 
Há contudo um dia em que acordamos outros. 
As mãos escorregam-nos no fogo e os meus olhos desvelam-se-me em ti. É por aí, é por essa fresta que a luz entra, é por aí que o mundo ocorre. O sopro do mundo voar-nos-á sobre o labirinto, e Creta, Creta é um lugar lindo quando se espelha nos teus olhos. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Love songs to no one else - XXI

XXI

Aguardo-te no mesmo lugar de sempre, desde sempre. 
Percorri o mundo na vingança de meu povo. Ulisses, o descentrado do mundo fazendo perto os lugares longe. A mim faço chegar paisagens e nelas inscrevo teu nome. Assim perduro no tempo. Os milénios lembrar-me-ão nas paisagens em ti inscritas.  
Herdei o dom de ser difuso, difundido nas paisagens. 
Quis pouco menos que isto onde o mundo me levou. Um olhar que rente a ti me fosse, focado desde todos os olhares.
Somos prismas. Focos de sentido desde onde o mundo se nos espelha. Vagamos contudo cores distintas. Em cada cor nos envergamos nossa pele. Tu és transparente. Tu. Tu me és o dom da transparência. Pudera eu ser teu secreto dom. Pudesse eu saber o lugar desde onde o Sol incide. Saber a luz iluminando teu rosto, devagar. Pudesse eu ser devagar como o silêncio que te escuto. 
Soubesses quanto a soma das vencidas batalhas me é tão pouco, como as inusitadas manhãs me irrompem na derrota de não te ter, meu Amor. 
Recolho-me a nossa casa. Recolho-me a nossa casa disfarçado do mendigo que hoje sou. Envergo cicatrizes, poemas trazidos de terras distantes. Em meus bolsos te procuro. Um sinal. O dom do instante regresso. Uma armadilha que de novo meu lar me insira. 
Aqui, onde os estores se abrem e o mundo nos é leve. Onde teus olhos me olham a transparência das águas e as águas correm céleres o ímpeto em nossos pés. Quero ficar onde estou. Onde a luz se difunde desde ti. Onde a nobreza é o perdão e a perfídia não existe. 
Se a transparência for a difusão das cores até à fusão do olhar, que nossos olhares se fundam. Que nossos olhares nos fundem as raízes de aqui estarmos e que eu não mais possa partir. 

Aguardo-te no mesmo lugar de sempre, desde sempre.

Rui Carvalho, s. d.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Útero - XVII - Fotografia: Sónia Nobre; Texto: Rui Carvalho



Há um assomo de tristeza habitando o interior das casas quando os frutos abandonam o coração das árvores. 
Lá fora há o mundo e o mundo gera o medo. Os anos decompõem-nos as estações e a cada estação a dor aumenta em nosso peito. Vivemos a secura dos frutos e secos nos deparamos. 
Sim, o inverno dos dias é o tempo de todas as partidas e todas as partidas nos conduzem a quem  poderíamos ter sido.
Proviemos na neblina e aí nos insolvemos. 
Depois é tarde, demasiado tarde. 
Os frutos cingem-nos no medo, e no medo nos afogamos. Deixamos-nos afogar na expectativa do porvir até à impossibilidade do regresso.
Somos premissas de um mero silogismo, até nos tornarmos irrefutavelmente inconclusos.
É assim, é sempre assim que o amor nos seca.

Fotografia: Sónia Nobre
Texto: Rui Carvalho


domingo, 21 de janeiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXVII - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



Os milénios são gotas de água escorrendo a face dos deuses. E os reencontros são momentos que nos unem e desunem. Como ímans, atraímos o amor e o ódio com a mesma intensidade. 
 No reencontro, os Gregos éramos já outros. A Grécia havia-se tornado uma incomensurável obra literária, e após a hecatombe houvéramos refeito as nossas vidas. Deixámo-nos sitiar pelos dias e das sagradas acrópoles agora é outro tudo aquilo que nos resta.
 Busquei o outro de mim e o outro de mim nunca chegou. Apenas o tempo ainda me persegue. O tempo dos relógios sucumbindo à voragem do heróico tempo grego. É aqui que me cindo.

 Junto ao Partenon, como um hebreu junto ao muro das lamentações. Aqui aguardo. O inaugural instante da repetição. Na imprevisibilidade do instante, o desnudamento de uma alma.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Breve tratado acerca da arte de jardinar

Procuro o remoto lugar onde mais ninguém haja ou a preenchida metrópole onde ninguém se conhece. Jamais o intermédio das coisas, o provinciano lugar onde tantos aldeões se julgam tão cosmopolitas.

Rui Carvalho, s. d.

domingo, 14 de janeiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXVI - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



De cima para baixo, assim ocorre o espanto. O fogo arde-nos as pálpebras e os olhos abrem-se muito. E a perplexidade, a perplexidade é alguns degraus antes de nos enfrentarmos na transparência.  
Antes da transparência há uma procura. Procuramos o fogo e a razão de ser do fogo. Contudo, os olhos permanecem-nos demasiado abertos. 
Há uma espécie de cegueira que se repercute, que se alastra até ao cerne das nossas mãos. 
Somos tocados pela fragilidade do mundo, e vice-versa. Tocados pelo sopro das coisas vamo-nos tornando outros. E os dedos, os nossos dedos são tão frágeis quanto a miséria que nos une.
Há uma luz que nos espreita. É essa a luz que funda o nosso olhar. Devemos seguir o trilho do fogo, adequar-nos às temperaturas de fusão. 
E.
Tudo isto se trata de um treino intenso. 
Somente quando formos aptos a supor-nos a alteridade poderemos sobrevir a mediocridade do mundo. 
De qualquer modo, dentro em pouco serei o espelho do teu riso. 

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho

domingo, 7 de janeiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho


Haverá um percurso desde a fonte de onde brotas; percorrê-lo-ei pelo avesso. As flores subirão teu rosto até ao cerne dos meus olhos e os dias, os dias serão eternos como o fogo. 
Reconhecer-te-ei quando chegares.
Tua voz cindirá as águas e por entre elas correrá teu cheiro. Será esse o rio. Fluirás como a sede em minha boca. E o desejo, o desejo unir-nos-á os corpos. 
Brevemente seremos outros. Existirá um mundo após o naufrágio tal qual houve um mundo após o dilúvio. 

Que o estio não se esgote, e que teus passos, que teus passos me sejam a transcrição de uma vida.  

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho


segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Tale of a man who whispered to the flowers - XXIV - Fotografia: Céu Baptista; Texto: Rui Carvalho



A tua tez é a reversão do escuro, e, Esparta, Esparta é o lugar onde o Sol se despe para ornar teu corpo. Quando o brilho nos ofusca resta que nos deixemos levar pelo sopro. Afrodite singrando-me o amor, a mais bela entre as mulheres - Helena chegando ao átrio dos meus olhos.
Ao décimo dia após a minha chegada Menelau partirá para honrar a memória de Catreu, seu avô materno. Então, então se iniciará a guerra. Partiremos de mãos dadas, e de mãos dadas atingiremos a precisão do fogo.
A cinza das estrelas compõe o cerne do mundo e a filigrana dos corações é o material que nos despe. É pois necessário que a noite se acenda para que o escuro se revele. Saberei tornar o mundo um lugar escuro, um lugar onde nada haja excepto a visão que nos caminha. É sempre assim que se inicia uma guerra, com dois corações ardendo na partida. 
Em Tróia nos acercaremos da redenção, e nem uma frota de mil navios me demoverá de habitar teu nome.
Jamais amaste Menelau e os teus olhos são a ânsia da partida.

Fotografia: Céu Baptista
Texto: Rui Carvalho