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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Love songs to no one else - XXXVI

XXXVI

Que teus olhos me vertam no dom da escrita, e que por detrás de teus olhos haja o brilho do mundo. Hajam as tardes para que eu te veja e sejam as tardes o breve sonho dos astros, esse lugar onde te sinto. A ti que me iluminas as noites com a recusa do sono. 
Por ti passo meu corpo, as fragrâncias onde anseio para sempre seres minha. Possa a passagem do tempo ser reduzida à solidez do teu toque, e que em teu toque me sinta a permanência das coisas. Que em ti me traga o universo dançando, e na dança dos corpos o ruído me perca. 
Acho-me correndo os olhos em ti, a reciprocidade do desejo, esse olhar que me cercas com a certeza do salto. Que o medo da queda seja menos que o querer-te nua entre meus dedos. Que te deixes volátil no terno ar que te povoa o desejo. Que nele te deixes fixar, e assim povoados sejamos no sexo singrando-nos as vidas. 
Vislumbro-te os seios descendo-te o rosto, esse lugar onde permanecerei o infinito tempo das sementeiras; aqui aguardo a tua colheita, a feitura do vinho onde beberei tua boca. Remontarei  depois ao sopro da vida, à dionisíaca presença dos corpos dançando os instantes felizes. Relembraremos tempos Antigos, Dionisio vertendo-nos como néctar divino.  
Entre tuas pernas espoletarei o gatilho do mundo. O girar das línguas nos sexos até ao irromper dos astros. Haverá a irrealidade crescendo connosco. Connosco cresceremos o longínquo tempo das bacantes. A animalidade surgindo por entre as árvores, essa ténue surpresa elevando-nos as almas e os corpos, fundindo o delírio dos gestos até que a alma nos reverta as paisagens.   
Pudera eu reverter-nos à mitologia, Ariadne, minha doce Ariadne. Pudera reverter o mundo em meus perdidos gestos. Pudera eu reverter o lugar onde te perdi, rever-nos no aqui e agora a perenidade do leito onde desde sempre te pressinto.

Pudera eu reverter-nos na demiurgia as primeiras horas da criação do mundo, Ariadne, minha doce Ariadne. 

Álvaro Cunhal, s. d.

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